quarta-feira, 3 de março de 2010

Juarez Cirino dos Santos

INSTITUTO DE CRIMINOLOGIA E POLÍTICA CRIMINAL

POLÍTICA CRIMINAL: REALIDADES E ILUSÕES DO DISCURSO PENAL

Juarez Cirino dos Santos


A política criminal é o programa do Estado para controlar a criminalidade. O núcleo do programa de política criminal do Estado para controle da criminalidade é representado pelo Código Penal. O instrumental básico de política criminal de qualquer código penal é constituído pelas penas criminais – em menor extensão, sob outro ponto de vista, pelas medidas de segurança para inimputáveis.
As penas criminais, como instrumento principal de política criminal da lei penal brasileira, são agrupadas em três categorias: penas privativas de liberdade, penas restritivas de direito e penas de multa (CP, art. 32). Contudo, o programa estatal de política criminal não pode ser compreendido pelo estudo das penas criminais em espécie, mas pelo exame das funções atribuídas às penas criminais: as funções de retribuição da culpabilidade, de prevenção especial e de prevenção geral da criminalidade.[1] Na atualidade, o estudo das funções atribuídas às penas criminais mostra o grau de esquizofrenia dos programas de política criminal, em geral, porque discurso penal e realidade da pena caminham em direções contrárias. O objetivo deste estudo é descrever a contradição entre discurso e realidade da política criminal contemporânea.

1. A pena como retribuição de culpabilidade
1.1. A pena como retribuição de culpabilidade do autor consiste na compensação da culpabilidade ou, como também se diz, na expiação da culpabilidade do autor, mediante imposição de um mal equivalente ao fato praticado, sem qualquer finalidade social útil[2], segundo a conhecida fórmula de SENECA: punitur, quia peccatum est.[3] A longevidade ou capacidade de sobrevivência da função de retribuição de culpabilidade – a mais antiga e, de certo modo, a mais popular função atribuída à pena criminal – poderia ser explicada, talvez, pela psicologia popular: o talião, expresso na fórmula olho por olho, dente por dente, parece constituir traço marcante da psicologia humana. Afinal, a mais poderosa influência na formação de atitudes do povo provém das Igrejas e suas religiões, que postulam uma justiça divina retaliatória: a pena justa seria um mandamento de Deus e, assim, a aplicação e execução de uma pena criminal retributiva seria realização da justiça divina.[4]
Por outro lado, o discurso retributivo se enraíza no pensamento dos maiores filósofos idealistas da história humana: a) KANT afirma, na Methaphysik der Sitten, que a retribuição é uma lei inviolável, ou seja, um imperativo categórico e, por isso, todo aquele que mata deve morrer. Essa teoria está presente na célebre hipótese da dissolução da sociedade: “se um povo abandonasse sua ilha para se dispersar, o último assassino encontrado na prisão deveria ser previamente executado, para que imperasse justiça”;[5] b) igualmente HEGEL, para quem o crime seria a negação do direito, a pena seria a negação da negação e, portanto, a reafirmação do direito, exclui toda e qualquer função preventiva da pena, cujo emprego seria equivalente a “erguer um bastão contra um cão” e, assim, tratar “o homem como um cão, sem honra, nem liberdade”.[6]
Finalmente, esse discurso se baseia diretamente na lei penal, que consagra o princípio retributivo: o legislador determina ao juiz aplicar a pena conforme necessário e suficiente para reprovação do crime (art. 59, CP) – e, por essa razão, também a jurisprudência criminal, em geral, é retributiva: “toda pena criminal é, por natureza, retribuição através da imposição de um mal”.[7]
1.2. A crítica ao discurso retributivo indica que a retribuição (expiação ou compensação) da culpabilidade constitui fundamento metafísico da punição: retribuir um mal com outro mal pode corresponder a uma crença – e, assim, constituir um ato de fé –, mas não é um argumento democrático, nem científico. Primeiro, não é argumento democrático porque no Estado Democrático de Direito o poder é exercido em nome do povo – e não em nome de Deus – e o direito penal tem por objetivo a proteção de bens jurídicos – e não realizar vinganças.[8] Segundo, não é argumento científico porque a culpabilidade retribuída (compensada ou expiada) se fundamenta numa hipótese indemonstrável: a liberdade de vontade do ser humano.[9] O pressuposto da liberdade de vontade foi banido de todas as ciências, mas ainda sobrevive nas teorias jurídicas que pretendem definir o fundamento material da culpabilidade[10], como as teorias (a) do poder de agir de outro modo, (b) da atitude jurídica reprovada ou defeituosa, (c) da falha de motivação jurídica, ou (d) da dirigibilidade normativa.
Entretanto, o reconhecimento de que a culpabilidade não pode servir de fundamento da pena – porque a liberdade de vontade é um mito indemonstrável – originou a teoria da culpabilidade como limitação da pena, o que não constituiria simples troca terminológica, mas mudança de sinal com conseqüências político-criminais relevantes: a culpabilidade como fundamento da pena legitima o poder de punir e, portanto, assume o ponto de vista do Estado contra o indivíduo; a culpabilidade como limitação da pena garante a liberdade individual, protegendo o indivíduo contra o poder do Estado, porque sem culpabilidade não pode existir pena, nem excesso de punição com finalidades exclusivamente preventivas.[11]

2. A pena como prevenção especial
2.1. O Estado espera que a função de prevenção especial atribuída à pena criminal realize o objetivo de evitar crimes futuros, mediante a ação positiva de correção do autor através da execução da pena, que aprenderia a conduzir uma vida futura em responsabilidade social e sem fatos puníveis, e mediante a ação negativa de proteção da comunidade pela neutralização do autor através da prisão, que não poderia praticar novos fatos puníveis contra a coletividade social[12] – segundo outra fórmula antiga: punitur, ne peccetur.[13]
O discurso da prevenção especial como correção do criminoso pressupõe a capacidade da psicologia, da sociologia, da assistência social etc., de transformar a personalidade do preso mediante trabalhos técnico-corretivos realizados no interior da prisão, segundo previsão legal: a pena deve ser aplicada conforme necessário e suficiente para prevenir o crime (CP, art. 59) e deve ser executada para permitir harmônica integração social do condenado (LEP, art. 1o).
2.2. A crítica ao discurso da prevenção especial destaca o fracasso histórico do projeto técnico-corretivo da prisão, caracterizado pelo chamado isomorfismo reformista, de reconhecimento continuado do fracasso da prisão e de reproposição reiterada do mesmo projeto fracassado.[14] Os argumentos que demonstram o fracasso da prevenção especial se distribuem ao nível da execução e ao nível da aplicação da pena.
Ao nível da execução da pena, em geral admitida como ultima ratio da política social, a introdução do condenado na prisão inicia um duplo processo de transformação pessoal: um processo de desculturação progressiva, consistente no desaprendizado dos valores e normas próprios da convivência social; um processo de aculturação simultâneo, consistente no aprendizado forçado dos valores e normas próprios da vida na prisão: os valores e normas da violência e da corrupção[15] – ou seja, a prisão só ensina a viver na prisão. Após o cumprimento da pena, esse processo de recíproca desestruturação e reestruturação da personalidade, atualmente conhecido como prisionalização do condenado, é agravado pelo retorno do egresso às mesmas condições sociais adversas que estavam na origem da criminalização anterior.
Ao nível da aplicação da pena existe grave tensão entre a aparência do processo legal devido e a realidade do exercício seletivo do poder de punir: a) o discurso jurídico destaca o processo legal devido, regido pela dogmática penal e processual penal como critério de racionalidade, define o crime como realidade ontológica preconstituída e apresenta o sistema de justiça criminal como instituição neutra que realiza uma atividade imparcial;[16] b) a criminologia crítica revela o processo legal devido como exercício seletivo do poder de punir, mostra o crime como qualidade atribuída a determinados fatos, a criminalização como um bem social negativo distribuído desigualmente e, finalmente, o sistema de justiça criminal como instituição ativa na transformação do cidadão em criminoso, segundo a lógica menos ou mais inconsciente das chamadas meta-regras (ou basic rules), definidas por SACK como o momento decisivo do processo de criminalização: mecanismos psíquicos emocionais atuantes no cérebro do operador do direito, constituídos de preconceitos, estereótipos, traumas e outras idiossincrasias pessoais, que explicariam porque a repressão penal se concentra nas drogas e na área patrimonial, por exemplo, e não nos crimes contra a economia, a ordem tributária, a ecologia etc.[17]

3. A pena como prevenção geral
3.1. Finalmente, o Estado acredita que a função de prevenção geral atribuída à pena criminal realiza o objetivo de evitar crimes futuros, também de duas formas: a) primitivamente, a prevenção geral possuía apenas forma negativa, pela qual a intimidação da pena criminal desestimularia pessoas de praticarem crimes, segundo a célebre teoria da coação psicológica, de FEUERBACH[18]: não seria o rigor da pena, mas o risco (ou certeza) da punição que intimidaria o autor, conforme uma velha teoria de BECCARIA[19], hoje muito difundida – e, portanto, o desestímulo poderia ocorrer em crimes que implicam reflexão (crimes econômicos, ecológicos etc.), mas não em crimes espontâneos (crimes violentos, por exemplo)[20]; b) modernamente, atribui-se também uma forma positiva à prevenção geral, conhecida como integração-prevenção: a execução da pena no caso concreto cumpriria função de estabilização social normativa, porque demonstraria tanto a necessidade como a utilidade do controle social penal: por um lado, indicaria a necessidade do controle social penal para proteção da sociedade; por outro lado, mostraria a utilidade do controle social penal, na medida em que a punição do criminoso elevaria a fidelidade jurídica do povo, enquanto a não-punição do criminoso, além do repúdio do sentimento jurídico da coletividade, reduziria a confiança da população na inquebrantabilidade do Direito.[21]
3.2. A crítica à função negativa de intimidação destaca que a prevenção geral não possui critério limitador da pena, degenerando em puro terrorismo estatal[22] – como ocorre, por exemplo, com os crimes hediondos, no Brasil; por outro lado, assinala que a intimidacão atribuída à função de prevenção geral negativa da pena criminal constitui violação da dignidade humana: a punição imposta ao condenado teria por objetivo influenciar o comportamento da coletividade, de modo que o sofrimento de uma pessoa seria simples exemplo para intimidar outras pessoas.[23]
A função positiva de estabilização social normativa da prevenção geral surge em conjunto com o direito penal simbólico, representado pela criminalidade econômica, ecológica etc., em que o Estado não parece interessado em soluções sociais reais, mas em soluções penais simbólicas, que protegeriam complexos funcionais (a economia, a ecologia etc.) – e não bens jurídicos individuais –, nos quais o homem deixa de ser o centro de gravidade do direito para ser um simples portador de funções jurídico-penais, segundo a tese de BARATTA.[24] Assim, o direito penal simbólico não teria função instrumental – ou seja, não existiria para ser efetivo –, mas teria função meramente política, através da criação de imagens ou de símbolos que atuariam na psicologia do povo, produzindo determinados efeitos úteis. O crescente uso simbólico do direito penal teria por objetivo produzir uma dupla legitimação: a) legitimação do poder político, facilmente conversível em votos – o que explica, por exemplo, o açodado apoio de partidos populares a legislações repressivas no Brasil; b) legitimação do direito penal, cada vez mais um programa desigual e seletivo de controle social das periferias urbanas e da força de trabalho marginalizada do mercado, com as vantagens da redução ou, mesmo, da exclusão de garantias constitucionais como a liberdade, a igualdade, a presunção de inocência etc., cuja supressão ameaça converter o Estado Democrático de Direito em estado policial.[25] O conceito de integração-prevenção, introduzido pelo direito penal simbólico na moderna teoria da pena, cumpriria o papel complementar de escamotear a relação da criminalidade com as estruturas sociais desiguais das sociedades modernas, instituídas pelo direito e, em última instância, garantidas pelo poder político do Estado.



[1] Comparar ROXIN, Claus. Strafrecht, 1997, p. 41-54, n 1-32.
[2] Ver GROPP, Walter. Strafrecht, 2001, p. 32, n. 101-102; ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 41, n. 2.
[3] SENECA, De ira 1, 16, 21, sob invocação de Platão, Nomoi 11, 12, in GROPP, Strafrecht, 2001, p. 32, n. 102.
[4] Ver ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 43, n 5.
[5] KANT, Immanuel. Methaphysik der Sitten, p. 455: “Wenn ein Volk seine Insel verlässt, um auszuwandern, so müsste zuvor der letzte Mörder im Gefängnis gehängt werden, damit Gerechtigkeit walte”.
[6] HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Grundlinien der Philosophie des Rechts, in Gans E. (Editor), complemento ao §99.
[7] Decisão do Tribunal Federal Constitucional alemão, 22, 132, in ROXIN, Strafrecht 1997, p. 43, n. 6.
[8] Ver ALBRECHT, Peter-Alexis. Kriminologie, 1999, p. 50-51; ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 43, n. 8.
[9] ALBRECHT, Kriminologie, p. 50, n. 2; ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 43-44, n. 8; CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A moderna teoria do fato punível, 2000, p. 209.
[10] Ver CIRINO DOS SANTOS, A moderna teoria do fato punível, 2000, p.209-215; também, ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 43, n. 8
[11] CIRINO DOS SANTOS, A moderna teoria do fato punível, 2000, p. 209; ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 43, n. 7; ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 51, n. 3.
[12] Assim ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 43, n. 7; ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 51, n. 2; GROPP, Strafrecht, 2001, p.104-105, n. 106.
[13] SENECA, De ira, I, XIX-7, referindo PLATÃO (427-347 d.C) que, por sua vez, invocava PROTÁGORAS (485-415 d.C), in ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 44-45, n. 11; também GROPP, Strafrecht, 2001, p. 34, n. 106.
[14] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, 1977, p. 239.
[15] Ver BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal, 1999, 2a edição, p. 184-185, tradução de Juarez Cirino dos Santos.
[16] Ver BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal, 1999, 2a edição, p. 104-109, tradução de Juarez Cirino dos Santos; também ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 82-83.
[17] SACK, Fritz. Neue Perspektiven in der Kriminologie, in Kriminalsoziologie, organizado por R. Konig e F. Sack, 1968, p. 469; BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal, 1999, 2a edição, p. 104-109, tradução de Juarez Cirino dos Santos; também ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 82-83, II.
[18] FEUERBACH, Paul Johann Anselm von. Lehrbuch des gemeinen in Deutschland geltenden peinlichen Rechts, 1801 (edição de 1966, p. 38).
[19] BECCARIA, Cezzare. Dei delitti e delle pene, Giuffré Editore, Milano, 1973 (reimpressão), p. 73.
[20] ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 62-63.
[21] ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 54, V, 1; ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 50, n. 26.
[22] ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 52-53, n. 32.
[23] ROXIN, Strafrecht, 1997, p. 52-53, n. 32.
[24] Assim, BARATTA, Alessandro. Integrations-Prävention. Eine Systemtheoretische Neubegründung der Strafe, Kriminologisches Journal, 1984, p. 135; também ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 66-67.
[25] ALBRECHT, Kriminologie, 1999, p. 68-80.

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