terça-feira, 2 de março de 2010

Sistema Garantista - Parte do Livro Decisão Penal

§ 2o – Os Princípios do Sistema Garantista (SG)
1 – A espistemologia garantista proposta por Ferrajoli será primeiramente descrita, a fim de possibilitar, ao depois, um balanço crítico de suas implicações no contexto da maneira pela qual, no Brasil, o senso comum teórico constrói uma decisão penal, apontando-se as próprias críticas do modelo (Caps. 5o e 8o). Por básico, o manejo do poder no ‘Estado Democrático de Direito’ se deve dar de maneira controlada, evitando a arbitrariedade dos eventuais investidos no exercício do poder Estatal (Cap. 3o). Desta forma, para que as sanções possam se legitimar democraticamente precisam respeitar os ‘Direitos Fundamentais’, apoiando-se numa cultura igualitária e sujeita à verificação de suas motivações, porque na assertiva de Binder: “El poder es sumamente intenso y, por lo tanto, debe ser cuidadosamente limitado. Si la sociedad ha tomado la decisión de dotar a algunos funcionarios (los jueces) del poder de encerrar a otros seres humanos en ‘jaulas’ (las cárceles) esse poder no puede quedar librado a la arbitrariedad y la falta de control.”
2 – Estruturando um sistema penal ideal garantista, Ferrajoli indica onze princípios necessários e sucessivos de legitimidade do sistema penal e, desta feita, da sanção. São eles: pena, delito, lei, necessidade, ofensa, ação, culpabilidade, jurisdição, acusação, prova e defesa. A ausência de um deles torna a resposta estatal, lida a partir do Garantismo, ilegítima, constituindo, cada um (dos princípios), condição da responsabilidade penal. São, assim, prescritivas de regras processuais ideais ao modelo garantista sem que o seu preenchimento in totum obrigue uma sanção; mas o contrário, pois somente com o preenchimento (de to)das implicações deônticas do modelo é que o sistema está autorizado a emitir um juízo condenatório .
A classificação divide-se em: a) garantias penais: “delito”, “lei”, “necessidade”, “ofensa”, “ação” e “culpabilidade”; e b) garantias processuais: “jurisdição”, “acusação”, “prova” e “defesa”. Em sendo a “pena" excluída do rol de garantias, por ser apenas uma possibilidade ao cabo do processo, o modelo ideal full é composto por dez axiomas, vertidos em latim:

A1 Nulla poena sine crimine
A2 Nullum crimen sine lege
A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate
A4 Nulla necessitas sine injuria
A5 Nulla injuria sine actione
A6 Nulla actio sine culpa
A7 Nulla culpa sine judicio
A8 Nullum judicium sine accusatione
A9 Nulla accusatio sine probatione
A10 Nulla probatio sine defensione

3 – Na linha dos princípios, Ferrajoli assevera que estes axiomas podem ser também entendidos, respectivamente, como:

1) princípio da retributividade ou da conseqüencialidade da pena em relação ao delito;
2) princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito;
3) princípio da necessidade ou da economia do direito penal;
4) princípio da lesividade ou da ofensividade do evento;
5) princípio da materialidade ou da exterioridade da ação;
6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal;
7) princípio da jurisdicionaridade, também no sentido lato e no sentido estrito;
8) princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação;
9) princípio do ônus da prova ou da verificação;
10) princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade.

Decerto que estes axiomas podem ser articulados sistematicamente, propiciando, assim, a previsão teórica de diversos sistemas concretos e a respectiva desconformidade com o SG. Por este motivo, na linha da tradição Iluminista e Liberal, Ferrajoli constrói um sistema próprio, cujos contornos serão evidenciados, reiterando-se que a proposta divide-se em ‘garantias penais’ e ‘garantias processuais’, das quais as primeiras serão somente referidas na medida da necessidade, dado que a finalidade principal deste escrito é processual.
§ 3o – Direito Penal Mínimo versus Máximo

“O direito é, pois, uma maneira regulamentada de fazer a guerra.” Michael Foucault

1 – Contrapondo, pois, o ‘Direito Penal Mínimo’ com o ‘Direito Penal Máximo’ , os quais possuem como referencial ideal o SG, Ferrajoli resume a proposta da seguinte forma:
O modelo garantista descrito em SG apresenta as dez condições, limites ou proibições que identificamos como garantias do cidadão contra o arbítrio ou o erro penal. Segundo este modelo, não se admite qualquer imposição de pena sem que se produzam a comissão de um delito, sua previsão legal como delito, a necessidade de sua proibição e punição, seus efeitos lesivos para terceiros, o caráter externo ou material da ação criminosa, a imputabilidade e a culpabilidade do seu autor e, além disso, sua prova empírica produzida por uma acusação perante um juiz imparcial, em um processo público e contraditório em face da defesa e mediante procedimentos legalmente preestabelecidos.”
Diante disso, cada sistema concreto poderá ser avaliado como de uma tendência ao ’direito penal mínimo’ ou ao ‘direito penal máximo’, conforme satisfaça as condições antes indicadas, investindo-o de racionalidade e certeza, na melhor tradição liberal. Garantismo e racionalidade encontram-se, pois, imbricados na pretensão de construir a legitimidade do sistema punitivo, mediante o estabelecimento de uma tecnologia apta e democraticamente sustentada pelos Direitos Fundamentais (Cap. 3o).
Essa certeza/racionalidade buscada pelos sistemas, divide-se, consoante cada modelo – máximo ou mínimo –, na seguinte opção segundo Ferrajoli: enquanto para o modelo máximo, a certeza deve impedir que “nenhum culpado fique impune, à custa da incerteza de que também algum inocente possa ser punido” ; no caso do direito penal mínimo, a atuação se dá no sentido de que “nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar impune.” Para o modelo penal mínimo, apesar da previsão em lei do tipo penal, somente se comprovada processualmente a conduta é que poderá se impor uma sanção, levando a sério a ‘presunção de inocência.’ De outra face, o modelo penal máximo golpeia esta garantia, na ilusão de colher nas malhas do direito penal todos os culpados:
Se a jurisdição é a atividade necessária para obter a prova de que um sujeito cometeu um crime, desde que tal prova não tenha sido encontrada mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido à pena. (...) A culpa, e não a inocência, deve ser demonstrada, e é a prova da culpa – ao invés da de inocência, presumida desde o início – que forma o objeto do juízo. Esse princípio fundamental de civilidade representa o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado.
2 – Some-se a isto que o Poder Legislativo encontra, ainda, a barreira material dos Direitos Fundamentais em duplo sentido. Partindo-se do Direito Penal como última ratio (princípios da lesividade, necessidade e materialidade), a regulamentação de condutas deve se ater à realização dos Princípios Constitucionais do Estado Democrático de Direito, construindo-se, dessa forma, um modelo minimalista de atuação estatal que promova, de um lado, a realização destes Princípios e, de outro, impeça suas violações, como de fato ocorre com a explosão legislativa penal contemporânea , quer pelas motivações de manutenção do status quo, como pela ‘Esquerda Punitiva’ .
Cabe destacar que as ‘garantias penais’ são de suma importância para compreensão do ‘modelo penal mínimo’ adotado pelo Garantismo, motivo pelo qual, mesmo que tangenciando muitas das críticas possíveis, serão esclarecidos: a justificação do direito de punir e os princípios da ‘legalidade’, ‘necessidade’, ‘lesividade’, ‘materialidade’ e ‘culpabilidade’, ainda que de maneira contingente, salvo no que se refere ao princípio da ‘legalidade’.
3 – Discute-se, no contexto, a necessidade de uma teoria fundamentadora/justificadora da sanção . Entretanto, a pena, longe de uma fundamentação jurídica, possui somente uma justificação política, de ato de força estatal. É afastada qualquer justificação, retributiva ou preventiva, da medida, conforme explicita o Garantismo Jurídico, na pena tupiniquim de Carvalho . Relegada a discussão abolicionista (Foucault, Mathiesen, Christie e Hulsman) , assume-se a postura garantista-jurídico-penal, informada pelo Princípio da Secularização e da Laicização do Estado, da Teoria Agnóstica da Pena. Esta teoria, percebendo a imposição como ato de poder, tal qual a guerra , imputa ao direito penal a finalidade de redução das violências praticadas pelo Estado .
Existiria, portanto, uma dupla funcionalidade da sanção. Primeiro, impedindo a vingança privada (abusiva e espúria), eis que quem é Juiz em causa própria se vinga desmesuradamente – baluarte Iluminista e constante no pensamento do contratualista Locke . Em segundo lugar, restringindo a manifestação do poder político estatal, isto é, a pena, se dê de maneira arbitrária (sem limites) e violando os Direitos Fundamentais, nos exatos limites da estrita legalidade. Nada, absolutamente nada de retribuição ou prevenção (geral ou especial), consoante afirma Ferrajoli:
O paradigma do direito penal mínimo assume como única justificação do direito penal o seu papel de lei do mais fraco em contrapartida à lei do mais forte, que vigoraria na sua ausência; portanto, não genericamente a defesa social, mas sim a defesa do mais fraco, que no momento do delito é a parte ofendida, no momento do processo é o acusado e, por fim, no momento da execução, é o réu.

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