segunda-feira, 8 de março de 2010

Tráfico e coação irresistível II

Apelação Criminal n. 2008.067407-4, da Capital

Relator: Des. Moacyr de Moraes Lima Filho

APELAÇÃO CRIMINAL – TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES – COAÇÃO MORAL IRRESISTÍVEL – HIPÓTESE VERIFICADA – CAUSA LEGAL DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE – ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE – INTELIGÊNCIA DO ART. 386, VI, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – RECURSO NÃO PROVIDO.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 2008.067407-4, da comarca da Capital (1ª Vara Criminal), em que é apelante A Justiça, por seu Promotor, e apelado Mauro Fernandes de Souza Jardim:

ACORDAM, em Terceira Câmara Criminal, por votação unânime, negar provimento ao recurso. Custas de lei.

RELATÓRIO

Na comarca da Capital, o órgão do Ministério Público denunciou Mauro Fernandes de Souza Jardim como incurso nas sanções do art. 12, caput, da Lei n. 6.368/76.

Narra a denúncia que:

"No dia 12 de janeiro do ano em curso, após o recebimento de denúncia anônima dando conta de ocorrência de tráfico ilícito de entorpecentes na última residência da Rua Pedra da Listra, policiais militares dirigiram-se ao referido local, constatando grande movimentação de pessoas no local. Diante de tais fatos, abordaram um casal que saía da casa, sendo o denunciado Mauro Fernandes de Souza Jardim e sua companheira Denise dos Santos Vieira, os quais identificaram-se como proprietários da mesma, oportunidade em que lhes foi cientificado da denúncia recebida. Neste momento, Denise dos Santos Vieira, prontamente autorizou a entrada das autoridades policiais na casa para averiguação. O denunciado Mauro, todavia, relutou dizendo que só entrariam mediante mandado.

"Diante da autorização de um dos proprietários (fl. 14), foram efetuadas buscas no interior da residência, sendo encontrado dentro da geladeira, um torrão de erva prensada, envolto em fita crepe plástica transparente; dois torrões de erva maiores, dentro do armário do quarto do casal, embaixo de algumas peças de roupas, um torrão de erva embaixo de um berço, além de alguns pedaços de plásticos transparentes sobre a cama do casal. Nos demais cômodos da casa foram encontrados alguns 'baseados' e quantidades menores de erva.

"Desta forma, os policiais efetuaram a apreensão, no interior da casa, de 2.690,0g (dois quilos, seiscentos e noventa gramas) de cannabis sativa lineu, vulgarmente conhecida como 'maconha', substância entorpecente causadora de dependência físico-psicológica, conforme a Portaria n.º 344/SVS/MS, de 12 de maio de 1998 da Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, atualizada pela Resolução RDC n.º 254/2003 (Termo de Exibição e Apreensão de fls. 18 e Laudo de Constatação de fls. 20), a qual era guardada em depósito pelo denunciado Mauro Jardim.

"A quantidade da droga apreendida e as circunstâncias em que foram encontrados, comprovam que a droga era ali comercializada pelo denunciado" (fls. 2/5).

Regularmente instruído, o Magistrado a quo julgou improcedente o pedido contido na denúncia, com fulcro no art. 386, V, do Código de Processo Penal, com redação anterior à Lei n. 11.690/2008 (fls. 124/133).

Irresignado, o Ministério Público apela pugnando pela reforma da sentença, condenado-se o réu nos termos da exordial acusatória (fls. 138/146).

Com as contrarrazões pela manutenção da sentença (fls. 159/170), os autos ascenderam a esta Corte e a Procuradoria-Geral de Justiça manifestou-se, em parecer na lavra do Dr. José Eduardo Orofino da Luz Fontes, pelo não provimento do recurso (fls. 189/193).

VOTO

O recurso preenche os pressupostos objetivos e subjetivos de admissibilidade, motivo pelo qual deve ser conhecido.

A materialidade do delito restou consubstanciada pelo auto de prisão em flagrante (fls. 6/12), boletim de ocorrência (fl. 17), ficha de ocorrência da polícia militar (fl. 19), termo de exibição e apreensão (fl. 22), Laudo de Constatação (fl. 24) e Laudo Pericial (fls. 52/56).

A autoria, da mesma forma é incontroversa. O apelado confessou espontaneamente:

"[...] Que efetivamente e há mais de 6 meses estava guardando maconha em sua casa e a pedido de um pessoal lá do Morro; que quando os policiais adentraram a sua casa realmente no interior da mesma haviam dois torrões e meio de maconha sendo que uma parte estava na estante e a outra parte na geladeira; que o interrogando é usuário de maconha desde os 15 anos de idade porém não é viciado e trabalha de carteira assinada e está morando nesta casa a mais ou menos 6 anos; que este pessoal que é dono desta quantidade de maconha matou dois rapazes a pedrada há 6 meses ali em frente a sua casa e por isso aceitou que os mesmos guardassem a maconha em sua casa e sua mulher tinha conhecimento deste fato; que aquele pessoal dava uma parte desta maconha que guardava em retribuição pelo fato de guardar a maconha para eles; que aquele pessoal falou 'se não ajudar aquele bagulho vai ficar louco' por outras palavras explicando se o interrogado não cooperasse o negócio ia ficar sério e foi nesta hora que seu advogado utilizou a expressão 'morte', enquanto o interrogando estava falando e logo em seguida o próprio confirmou dizendo 'que a ameaça era de morte'; que o interrogando tinha vontade de sair de lá daquela casa porque sua esposa não estava mais agüentando esta situação; que o próprio interrogando falou que 'aquele pessoal lhe havia pedido para guardar 60 quilos de maconha e então pediu para eles, pelo amor de Deus para que não fizessem isto' e eles deram então apenas estes três pedaços grandes para que o interrogando os guardasse" (fls. 48/49).

Entretanto, verifica-se que não restou devidamente comprovado o tráfico de entorpecentes, sobretudo ante a fragilidade da prova.

Os policiais, apesar de na fase inquisitiva afirmarem que no local havia "intensa movimentação de pessoas" (fls. 6/9), não confirmaram tal alegação em Juízo.

O policial Luciano José Farias asseverou que:

"[...] receberam a informação de que havia tráfico de drogas em uma residência na localidade Pedra de Listras; que o P2 fez campana no local; que o depoente e sua guarnição foram ao local e entraram na casa, sendo que a entrada lhes foi franqueada pela esposa do acusado; que encontraram na geladeira, em um armário e no colchão quantidades de maconha; que se tratava aproximadamente de dois quilos da droga; que o acusado não admitiu que a droga lhe pertencia nem que era traficante; que o acusado disse ser usuário; que não recorda se encontraram qualquer objeto relacionado ao tráfico; que na região onde mora o acusado há muito tráfico de drogas; que confirma seu depoimento de fls. 06 e 07 dos autos [...] que segundo a proprietária da casa, a mesma era companheira do acusado, sendo que, inclusive tinha um filho; que não sabe dizer se havia mais alguém dentro da casa" (fl. 91).

No mesmo sentido são as declarações de seu companheiro de farda Djeison Vargas (fl. 90).

Os policiais da "P-2" que teriam feito campana e acompanhado a intensa movimentação não foram ouvidos em nenhum momento da instrução processual.

Assim, em razão da ausência de prova suficiente para a comprovação do comércio de entorpecentes, impõe-se a manutenção da sentença, tendo em vista o princípio in dubio pro reo.

Acerca do tema em questão, Paulo Rangel elucida:

"Portanto, estando o juiz diante de prova para condenar, mas não sendo esta suficiente, fazendo restar a dúvida, surgem dois caminhos: condenar o acusado, correndo o risco de se cometer uma injustiça, ou absolvê-lo, correndo o risco de se colocar nas ruas, em pleno convívio com a sociedade, um culpado.

"A melhor solução será, indiscutivelmente, absolver o acusado mesmo que correndo o risco de se colocar um culpado nas ruas, pois antes um culpado nas ruas do que um inocente na cadeia" (Direito Processual Penal. 11. ed. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 33)

Não é diferente o entendimento desta Corte:

"PENAL E PROCESSUAL. NARCOTRÁFICO EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL. FLAGRANTE NO INTERIOR DO PRESÍDIO EM VERIFICAÇÃO DE BENS DESTINADOS A PRESIDIÁRIO, ENTREGUES POR TERCEIRO, A PEDIDO DA MÃE DO DETENTO. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. PROVA. CONFISSÃO DA MÃE. PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO POR COAÇÃO MORAL IRRESISTÍVEL OU AUSÊNCIA DE DOLO. RECURSO MINISTERIAL PRETENDENDO A CONDENAÇÃO DO PARTÍCIPE. IMPOSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PROVA CONVINCENTE. ABSOLVIÇÃO MANTIDA.

"'Remeter' entorpecente ilícito basta à configuração do narcotráfico, não se exigindo seja o agente flagrado no momento da comercialização. Mesmo em se tratando do tráfico de drogas, a condenação exige certeza, quer do crime, quer da autoria, não satisfazendo simples suspeitas, inclusive fortes, que não se confundem com indícios e circunstâncias. Não havendo, nos autos, elementos de convicção absoluta da efetiva participação do apelante no narcotráfico, não há como condená-lo" (Apelação Criminal n. 2007.038883-3, de Chapecó, rel. Des. Amaral e Silva, j. em 27/11/2007).

No mais, adota-se, como razões de decidir, devido à relevância da argumentação, os fundamentos do judicioso parecer lavrado pela Procuradora-Geral de Justiça, na pessoa do Dr. José Eduardo Orofino da Luz Fontes:

"Além disso, inexiste nos autos qualquer elemento comprobatório da ida ao local de policiais descaracterizados (P-2), tampouco de que estes tenham realizado campana, capaz de confirmar o 'entra e sai' de pessoas na casa do apelado. Sim, porque os policiais referidos no auto de prisão em flagrante eram todos da mesma guarnição e relataram que haviam sido chamados para prestar apoio ao P-2.

"Na hipótese dos autos, caso admitíssemos a do apelado, o édito condenatório estaria baseado em 'testemunho de ouvir dizer', porquanto a referida movimentação de pessoas, que na maioria das vezes serve de indício a demonstrar a ocorrência do tráfico de drogas, não foi presenciada por nenhuma das testemunhas da acusação, que apenas declararam que o P-2 teria averiguado em campana. Mas quem integrava ou que era o P-2? Quem viu o movimento? Será que viram mesmo? Ou será que os policiais militares responsáveis pelo flagrante, no afã de juntar elementos para uma condenação, utilizaram-se de fórmulas muito conhecidas e utilizadas e até suspeitas, capazes de indicar a ocorrência do delito de tráfico?

"Parece que as palavras dos policiais não merecem toda credibilidade no caso em análise. Então, porque não apreenderam a tal arma de brinquedo que disseram haver encontrado na casa do apelado? Ainda que o acusado tivesse quebrado a arma, como sustentado, nada impediria de se juntarem os cacos. Salvo se a réplica fosse feita de areia!

"Já sobre a argumentação do recorrente, acerca do desconhecimento da prática do ilícito por parte da companheira, o que justificaria a autorização desta para a entrada dos militares na residência, tal não encontra guarida nos autos. Não haveria como ela desconhecer o fato, pois havia no quarto do casal pedaços de papel – que cabe ressaltar, aqui, podem ser provenientes da droga consumida pelo réu –, segundo a polícia, usualmente utilizados para embalar drogas, bem como torrões da droga na porta da geladeira, no guarda-roupa e embaixo do berço do filho, do casal.

"Por outro lado, aduz o Promotor de Justiça que sequer as testemunhas da defesa tinham conhecimento de que o acusado teria sido ameaçado pelos traficantes para que guardasse drogas em sua casa. Mas essa é a reação mais natural de quem é ameaçado e procura resguardar o maior bem da vida, seu e de sua família.

"Também, não é novidade a coação empregada por traficantes contra moradores das localidades onde atuam, a fim de que guardem as drogas, já que os alvos dos criminosos são pessoas fora de qualquer suspeita. Assim, quando a polícia resolve invadir a casa de um traficante, não encontra materialidade do delito, já que a droga encontra-se 'seguramente guardada na casa de cidadãos de bem, os quais, não têm opção: ou obedecem aos traficantes, ou morrem, têm suas casas incendiadas, ou mesmo destruídas como parecem demonstrar as fotos juntadas com as contra-razões. Tais fotografias fazem presumir que, o fato de o acusado não ter admitido a propriedade da droga desagradou aos traficantes, já que a polícia terá que diligenciar naquela área em busca dos verdadeiros traficantes.

"Sendo assim, e considerando que o apelado trabalhava à época do flagrante, além de as fotos da casa não apresentarem sinais de riqueza decorrente de traficância, no mínimo, deve ser mantida a sentença de absolvição, se não pelo reconhecimento da excludente de culpabilidade, consistente na coação moral irresistível, por observância da máxima in dúbio pro reo" (fls. 189/193).

É cediço que a coação moral irresistível exige a presença de elementos concretos que demonstrem de forma inequívoca ser inevitável e insuperável, a existência de ameaça de dano grave, atual e injusto.

Os depoimentos da informante e das testemunhas de defesa, compostas por vizinhos e habitantes do bairro dão conta exatamente dessa coerção dos reais traficantes do local. Veja-se:

"Que é esposa do acusado; que o mesmo é usuário de maconha; que moram no local há cerca de cinco anos; que o acusado comprou droga no local em que mora, por cerca de meia dúzia de vezes; que parou de fazê-lo há cerca de cinco meses antes de ser preso; que Mauro guardava maconha na sua casa, pois havia sido ameaçado pelos traficantes da região; que tais traficantes disseram que, se Mauro não guardasse a droga, eles o matariam; que fazia cerca de cinco meses que Mauro guardava drogas em casa; que Mauro não fazia venda de drogas na sua casa; que o acusado e a informante não se mudaram, pois Mauro estava trabalhando; que tinham intenção de sair do local; que não pensaram em denunciar o fato à polícia, pois teriam que se mudar imediatamente [...] que a ameaça sofrida pelo acusado foi feita na frente da informante; que tais ameaças foram feitas tanto na rua como na casa do acusado; que foram feitas por cerca de cinco pessoas; que o acusado não ficou devendo drogas para qualquer traficante; que não sabe dizer se a droga foi levada para a sua casa toda de uma só vez ou aos poucos; que as pessoas que ameaçaram o acusado tiravam a droga da casa aos poucos; que o acusado trabalhava na construção do Shopping Florianópolis, na SC 401; que a informante viu quando, diversas vezes, os traficantes iam buscar drogas em sua residência; que após a prisão do acusado, a informante foi procurada pelos traficantes para 'não dizer nada'; que não vai dizer quem são as pessoa, pois está morando no local sozinha com seu filho bebê" (Denise dos Santos Vieira, esposa do apelado, fl. 92).

Por sua vez, o ex-vizinho do apelado afirmou que:

"[...] nunca ouviu falar que o acusado tenha sido ameaçado para guardar drogas em casa; que o depoente já recebeu ameaças; que três pessoas que moram nas redondezas, ameaçaram, certa vez, o depoente para que o mesmo guardasse drogas em sua casa; que o depoente não guardou tais drogas, sendo que sua casa acabou sendo assaltada por duas vezes; que tais assaltos não foram desvendados; que após a prisão do acusado, o depoente recebeu novas ameaças, visando guardar drogas em sua casa; que ameaçavam matar sua esposa; que o depoente se mudou do local com medo; que nunca viu entra e sai de pessoas da casa do acusado; que nunca viu as pessoas que o ameaçaram na casa do acusado" (Jaci Alves Pires, fl. 93).

No mesmo sentido, o depoimento da vizinha Eliane da Silva Pires:

"[...] que não tem conhecimento do acusado ter envolvimento com brigas, álcool, ou drogas; que não tem conhecimento do acusado vender drogas ou usá-las; que não tem conhecimento do acusado ter sido ameaçado para guardar drogas na sua casa; que a informante foi ameaçada por traficantes do Morro, para guardar drogas dos mesmos; que a ameaça era de que se não fossem guardadas as drogas, alguém da família morreria; que por sua vez, há tempo, a informante viu estes traficantes na casa do acusado; que a informante não pode dizer o nome dos mesmos pois possui amigos que moram no local" (fl. 94).

Sobre o tema, já se pronunciou a jurisprudência:

"SUBSTANCIA ENTORPECENTE. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTE. COAÇÃO MORAL IRRESISTÍVEL. ABSOLVIÇÃO. TRÁFICO. COAÇÃO MORAL IRRESISTÍVEL, CAUSA LEGAL DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE. ABSOLVIÇÃO. Se a prova confirma que a infeliz mãe, analfabeta e sem perspectivas e esperanças, não obrou com vontade livre e consciente no transporte do entorpecente, não sendo possível exigir-se-lhe conduta diversa eis que coactada por seu companheiro e integrantes de sua quadrilha, é de justiça reconhecer a sua submissão à coação moral irresistível imposta com ameaça de morte. Absolvição que se impõe, com fulcro nos art. 22 do CP e 386, V do CPP" (TJRJ, Apelação Criminal n. 1620/1999, do Rio de Janeiro, rel. Des. Gama Malcher, j. em 25/5/1993).

À vista do exposto, o desprovimento do recurso é medida imperativa, mantendo-se incólume a sentença combatida.

DECISÃO

Ante o exposto, decide a Câmara, por unanimidade de votos, desprover o recurso.

O julgamento, realizado no dia 3 de fevereiro de 2009, foi presidido pelo Excelentíssimo Sr. Des. Alexandre d'Ivanenko, com voto, e dele participou o Excelentíssimo Sr. Des. Roberto Lucas Pacheco. Lavrou parecer, pela douta Procuradoria Geral de Justiça, o Excelentíssimo Dr. José Eduardo Orofino da Luz Fontes.

Florianópolis, 4 de fevereiro de 2009.

Moacyr de Moraes Lima Filho

RELATOR

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