segunda-feira, 8 de março de 2010

Tráfico e coação irresistível

Apelação criminal n. 98.012886-2, de Joaçaba.

Relator: Des. Álvaro Wandelli.

CRIME CONTRA A SAÚDE PÚBLICA.

RECURSO MINISTERIAL COLIMANDO A CONDENAÇÃO DA ACUSADA NAS INFRAÇÕES DO ART. 12 DA LEI N. 6.368/76 - ABSOLVIÇÃO EM PRIMEIRA INSTÂNCIA - MULHER DE PRESO QUE LEVAVA MACONHA PARA FORNECER AO COMPANHEIRO NO PRESÍDIO - GRAVES AMEAÇAS - INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA DIANTE DAS CIRCUNSTÂNCIAS.

A absolvição deve ser mantida, se restou sobejamente comprovado nos autos que a companheira de preso viciado não poderia ter agido de forma diferente, diante das ameaças, levando-se em conta que "as condições de resistibilidade ou não da ameaça devem ser examinadas concretamente, diante das condições psicológicas do ameaçado" (JUTACRIM 49/387) que, por ser humano, sente medo, independetemente de sexo e força física.

ABSOLVIÇÃO MANTIDA.

RECURSO DESPROVIDO.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 98.012886-2, da comarca de Joaçaba (1ª Vara/Infância e Juventude e Registros Públicos), em que é apelante a Justiça Pública, por seu Promotor, sendo apelada Gilmara Aparecida da Costa:

ACORDAM, em Segunda Câmara Criminal, por votação unânime, conhecer e negar provimento ao recurso.

Custas na forma da lei.

Na comarca de Joaçaba, GILMARA APARECIDA DA COSTA foi denunciada como incursa nas sanções do art. 12 da Lei n. 6.368/76, porque:

"No dia 06 de julho de 1996, por volta das 14:00 horas, a denunciada compareceu no presídio local a fim de levar mantimentos para seu amásio Marcelo da Silva Medeiros, que se encontra recluso neste ergástulo.

"Ao ser procedida uma revista nos viveres, foi constatado que a denunciada trazia consigo, escondido dentro de um pastel, para fornecer a seu amásio, para que este a consumisse no interior do presídio, cerca de 02 (duas) gramas de maconha, substância entorpecente causadora de dependência física e psíquica, envolta em plástico de cor branca (termo de apreensão de fls.11)" (fls. 02/03).

Concluída a instrução criminal, restou condenada ao cumprimento da pena de 03 (três) anos de reclusão, em regime fechado, e pagamento de 60 (sessenta) dias-multa, cada dia no valor de 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo vigente na época dos fatos, por infração ao art. 12 da Lei Antitóxicos.

Inconformada, apelou, argüindo, em preliminar, a nulidade da sentença, por ausência de fundamentação acerca das teses defensivas e, no mérito, a absolvição, sob o argumento de que agiu sob coação.

Processado o recurso, esta Segunda Câmara Criminal, por unanimidade, decidiu dar provimento parcial ao apelo para anular o processo a partir da sentença, inclusive.

Na nova decisão prolatada, o Magistrado sentenciante acolheu a tese da coação moral irresistível, absolvendo Gilmara Aparecida da Costa.

Inconformado, apelou, o Representante do Ministério Público, colimando a condenação de Gilmara Aparecida da Costa nos termos do art. 12 da Lei de Entorpecentes, ao argumento de inexistência de provas de que Gilmara agira sob o manto da excludente da coação moral irresistível.

Com as contra-razões, manifestou-se a douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer subscrito pelo Dr. Maurilio Moreira Leite, pelo provimento do recurso.

É o relatório.

Data venia do entendimento do douto parecerista, o recurso não deve ser provido, porquanto há nos autos provas suficientes de coação.

A autoria é confessada pela apelada nas duas fases procedimentais (fls. 08/09 e 27v.), onde assume que preparou os pastéis, dos quais um deles contendo maconha para ser entregue a Marcelo da Silva Medeiros, seu companheiro, no presídio, circunstância que em momento algum contestou.

O fato é que sua conduta, pelo que se infere dos elementos probatórios, evidencia que, com medo das inúmeras ameaças por parte de Marcelo - caso não lhe fornecesse a maconha solicitada -, atendeu aos seus pedidos, culminando com sua prisão.

Com efeito, extrai-se do interrogatório da apelada:

"Foi a interroganda quem preparou e levou para presídio os pastéis tendo acondicionado em um deles a maconha encontrada por ocasião da revista; que assim procedeu à pedido de seu companheiro Marcelo da Silva Medeiros que se encontra recolhido no presídio local; que Marcelo é viciado em drogas; que seguidamente Marcelo lhe solicitava que lhe trouxesse maconha, porém a interroganda sempre negava e na última oportunidade praticamente obrigou a interroganda a atender o seu pedido. Pegando-lhe pelos braços, ficando bastante alterado, dizendo que se não trouxesse a maconha não precisaria mais aparecer, pois pretendida desfazer o concubinato, que ficou preocupada com a reação de Marcelo e por isso resolveu atender seu pedido" (fls. 27v).

O contexto probatório navega neste sentido.

Marcelo da Silva Medeiros, o companheiro de Gilmara,por sua vez, afirmou:

"Que ameaçou a acusada de que caso não trouxesse tóxico, iria providenciar de que pessoas que estavam do lado de fora da cela, iriam 'lhe dar um couro', ou seja uma surra; que no período que viveram juntos, por diversas vezes agrediu a acusada fisicamente (...) que possuía pessoas do lado de fora da cadeia que poderiam dar a surra na acusada; que fez a ameaça para acusada em virtude de que é viciado, que confirma que a acusada sofreu um aborto em virtude de agressões exercitadas pelo informante (...) que o informante ameaçou a acusada de morte caso a mesma o entregasse à polícia (...) que quando a acusada estava grávida, batia nela em diversas partes do seu corpo; que batia no ventre da acusada; que tinha conhecimento de sua gravidez; que a acusada encontrava-se com tempo de dois meses de gestação (...) que inclusive sua irmã interveio impedindo que continuasse a agredir a acusada; que dita agressão consistia em socos e pontapés (...) que na madrugada posterior aos fatos teve que encaminhar a acusada ao hospital quando então veio a abortar..." (fls. 59v e 60). (GRIFEI).

O testemunho de Avaldi Domingues, carcereiro que flagrou a apelada com o entorpecente quando da visita realizada no presídio, confirmou que Gilmara disse que havia sido forçada a trazer o tóxico ao seu companheiro, esclarecendo:

"Que no dia dos fatos, encontrava-se de plantão junto ao presídio local, quando lá compareceu a acusada a fim de fazer uma visita e entregar alimentos ao seu amásio e ora presidiário, Marcelo da Silva Medeiros. Que como é de praxe passou a efetuar uma revista junto a sacola que a acusada carregava consigo. Que no interior da mesma havia ovos, um pacote de café, coador descartável e um pote tampado. Que abrindo dito pote constatou de que no interior deste haviam alguns pastéis de massa crua. Que observou de que alguns pastéis possuíam a massa bem uniforme e um outro havia uma certa saliência. Que achando tal fato estranho resolveu abrir para ver o que havia no interior do mesmo, quando constatou a presença de um pequeno plástico contendo uma pequena quantidade de maconha. Que acusada já estava saindo quando resolveu chamá-la e indagar-lhe acerca do que havia encontrado. Que a princípio a acusada não manifestou-se a respeito e em seguida, acabou confessando de que um amigo de seu amásio a havia obrigado a trazer tóxico, ocasião em que entrou em contato com a delegacia de polícia para a adoção das providências legais. Que retifica dizendo de que quem havia forçado a trazer o tóxico foi seu amásio. Que a acusada alegou de que não conhecia a pessoa que havia lhe fornecido a droga (...) Que acusada não mencionou tratar-se de usuária de tóxico. Que a acusada disse de que em visita anterior, o seu amásio havia insistido para que trouxesse droga" (fls. 44). (GRIFEI).

As testemunhas de defesa revelam os maus tratos infringidos por parte de Marcelo contra Gilmara, quando ainda não estava preso, cujas ameaças foram tão sérias que acabou resultando em um aborto, ressaltando, ainda, que sua atividade esportiva em virtude do sofrimento diminuiu.

Acásio Ysão Yamaguti, contou:

"Que tem alegar que a acusada sempre foi uma atleta valorosa, o que observou nos últimos tempos foi que houve um decréscimo na parte técnica da acusada e, inclusive, houve perda de peso corporal da mesma. Que de igual forma acusada diminuiu a sua assiduidade junto aos treinos e campeonatos. Que em determinada ocasião acusada esteve hospitalizada quando então tomou conhecimento de que havia abortado. Que ouviu comentários de terceiros de que acusada sofria maus tratos por parte de seu amásio. Que não tem conhecimento se a acusada é usuária de drogas (...) Que o fato da acusada ter perdido muito peso corporal, bem como baixado o rendimento técnico em sua atividade esportiva, deve-se ao sofrimento atribuído ao seu amásio, que teria maltratado" (fls. 47 e v). (GRIFEI).

Ana Rose da Silva Machado, confirmou:

"Que é colega de treinamento, na área esportiva, da acusada (...) Que tem conhecimento de que a acusada veio abortar em virtude de maus-tratos praticados pelo seu amásio" (fls. 48 e v). (GRIFEI).

Adriana Alves Capela, falou:

"Que tomou conhecimento através de um professor de judô de que a acusada teria abortado em virtude de maus-tratos praticados pelo seu amásio" (fls. 49 e v). (GRIFEI).

Insubsistente, portanto, a alegação da acusação de inexistência de provas de que Gilmara não cometera o evento delituoso em razão de coação, exercida pelo seu companheiro, quando se denota, dos depoimentos acima, que foi obrigada a levar maconha ao presídio mediante as invencíveis ameaças, que a impossibilitaram de agir de modo diverso.

Tal, se não caracteriza a coação moral irresistível, é o que basta para o reconhecimento da não exigibilidade de conduta diversa, por restar comprovado que da apelante não se pudesse exigir outra conduta, diante das circunstâncias, do que levar o tóxico ao companheiro viciado.

Celso Delmanto e outros, na edição atualizada do seu festejado Código Penal Comentado, ensina que "a possibilidade de exigir-se conduta diversa é, segundo a teoria finalista adotada pelo nosso Código, um dos pressuspostos da culpabilidade, ou seja, da reprovabilidade penal de uma ação ou omissão típica e antijurídica. Da mesma forma que não há liberdade sem responsabilidade, não pode haver responsabilidade penal sem liberdade, pois esta é fundamento daquele. No CP, a inexigibilidade de conduta diversa é a essência de algumas causas legais de exclusão, tanto da culpabilidade (como no caso da coação moral irresistível), quanto da antijuridicidade (por exemplo, na legítima defesa e no estado de necessidade). Todavia, nos casos em que a conduta do agente não se encaixe perfeitamente, nas excludentes legais, a doutrina diverge ao se admitir, ou não, a inexigibilidade de conduta diversa como uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade" (4ª edição, Renovar: Rio de Janeiro, 1998, p. 39).

Mutatis mutandis, a jurisprudência já admitiu a inexigibilidade de conduta diversa como forma de exclusão da culpabilidade no caso da esposa que dispensa a droga pertencente ao marido ante a chegada da polícia. Vide RJTJSP 111/515 e 110/476.

E, esta egrégia Câmara Criminal, no julgamento da Apelação Criminal n. 97.014293-5, em que fui relator, j. em 10.03.98, por votação unânime, decidiu pelo improvimento da apelação do Ministério Público que visava a reforma da sentença que absolvera avó de réu traficante, porquanto "não merece prosperar pretensão condenatória lastreada em mera presunção de co-autoria, se a avó do acusado, surpreendida por policiais, procura esconder prova material do delito em sua roupa íntima, fato que comprova apenas o intuito de proteger seu neto, o que é humano e compreensível".

Por outro lado, nem se diga que se coação houve, era perfeitamente resistível, haja vista que seu companheiro estava preso e impossibilitado de cumprir, naquela oportunidade, as ameaças que teria proferido, porquanto o próprio coactor afirmou "que possuía pessoas do lado de fora da cadeia que poderiam dar a surra na acusada" (fls. 60). (GRIFEI).

No caso em apreço, vê-se nas afirmativas da apelada e também pelas declarações das testemunhas da defesa, Acácio Ysão Yamaguti (fls. 47 e v), Ana Rose da Silva Machado (fls. 48 e v) e Adriana Alves Capela (fls. 49 e v.), as quais apontam o companheiro da apelada como pessoa violenta, que antes de ser preso a agredia (sofrera, inclusive, um aborto em conseqüência), que as condições mentais desta não permitiram vencer o mal prometido, o que justifica o ato da acusada, deslindando em uma conduta antijurídica.

Assim preconiza a jurisprudência:

"As condições de resistibilidade ou não da ameaça devem ser examinadas concretamente, diante das condições psicológicas do ameaçado, verificando-se se as condições mentais deste permitem ou não vencer o mal prometido" (JUTACRIM 49/387).

De outro vértice, não se poder aceitar como suficiente para condenar a apelada, somente porque os policiais militares Gilmar Antônio Bonamigo, João Carlos Cardoso (fls. 07/08 e 45 e v., 46 e v.) disseram que Gilmara no momento da sua prisão não havia mencionado a eles qualquer tipo de ameaça ou constrangimento por parte do seu amásio.

Tal afirmação revela-se um tanto quanto evasiva, pois a apelada mencionou em que circunstâncias cometera o ilícito, ou seja, o constrangimento sofrido, tanto perante a autoridade policial como em juízo, alegando que sofrera inúmeras ameaças, sendo obrigada a atender às exigências do companheiro, não encontrando outra saída a não ser levar a maconha para ele no presídio.

De mais a mais, é "sedimentado na jurisprudência predominante que o testemunho de policiais quanto aos atos de diligências, prisão e apreensão deve merecer credibilidade desde que não evidenciados sua má-fé ou abuso de poder, encontrando sua versão amparo no conjunto probatório do autos" (RT, 619:329), o que não ocorreu no caso em tela. (GRIFEI).

Pois bem, diante da exposição da prova coletada, não se vislumbra qualquer circunstância que evidencie tivesse a intenção de traficar. O que se tem não passa de meras suposições, pois afirmou taxativamente de que não era viciada.

Além disso, já se tem sustentado que " 'não basta o simples encontro da substância com o suspeito para erigir uma prova de autoria pois deve estar definida em termos de dolo do agente. A posse deve estar ligada ao uso ou ao tráfico. Daí a simples posse pode denotar uma presunção de autoria mas esta há de ficar também demonstrada. E, finalmente o dolo há de ser extraído das circunstâncias para que se autorize uma condenação (Os alucinógenos e o Direito LSD, Geraldo Gomes, Juriscredi-SP)" (TACRIM - SP - AC Rel. Geraldo Gomes, JUTACRIM 56/238). (GRIFEI).

Registre-se, ainda, que a circunstância de tratar-se de pessoa vice-campeã e campeã brasileira de judô, ostentando faixa marron, não quer dizer que não estivesse fragilizada, porquanto o fato de o ser humano sentir medo independe de sexo e força física.

Em que pese o esforço expendido pelo Promotor de Justiça, inclusive citando julgado desta casa do eminente Des. Nilton Macedo Machado (onde não havia notícias de qualquer comportamento violento anterior do coator), entenda-se, nas circunstâncias particulares deste processo, a inexigibilidade de conduta diversa restou suficientemente comprovada.

Por outro lado, apontar a apelada como traficante, impondo-lhe pena reclusiva de relativa duração, porque, mediante ameaça, cedeu aos insistentes pedidos de seu companheiro, em última análise, revelar-se-ia, uma injustiça.

Certo é que a doutrina e a jurisprudência têm procurado abrandar o rigor da norma penal do tráfico, procurando amenizar o efeito da expressão contida no caput, do art. 12, da Lei n. 6.368/76, no que se refere à cessão ou fornecimento gratuitos.

Neste diapasão, Celso Delmanto ensina:

"Um dos maiores defeitos deste art. 12 é estabelecer a punição a condutas que podem ser praticadas por outras pessoas que não os verdadeiros traficantes de drogas. A não exigência do propósito de comércio ou o fim de lucro (o artigo 12 pune o fornecimento ainda que gratuito) dá margem a punições que serão injustas, se a lei não for aplicada com prudência, nesse particular. Punir-se, com as mesmas graves penas, tanto o traficante profissional que ganha a vida às custas daquele comércio, como o usuário que cede ou passa a outro, ocasionalmente, parte do tóxico que adquiriu não seria justo" (in Tóxicos, Saraiva: São Paulo, 1982, p. 18).

E a jurisprudência fez eco, nos julgados publicados na RJTJESP 88/339, RJTJRS 102/17, RT 530/341, 649/265, 667/265 e JTJ 206/279.

Assim, a absolvição é de ser mantida nos termos da sentença.

Diante do exposto, decidiu a Segunda Câmara Criminal, por votação unânime, conhecer e negar provimento ao recurso.

Participou do julgamento, com voto vencedor, o Exmo. Sr. Des. Jorge Mussi, e lavrou parecer subscrito pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Dr. Maurílio Moreira Leite.

Florianópolis, 17 de novembro de 1998.

José Roberge

PRESIDENTE

Álvaro Wandelli

RELATOR

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