segunda-feira, 5 de abril de 2010

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Marcelo Piazza Sassi

Apelação criminal n. 2003.029651-4, de Lebon Régis.

Relator: Des. Irineu João da Silva.

TORTURA (LEI N. 9.455/97) – ELEMENTOS FACTUAIS QUE NÃO SE SUBSUMEM AO TIPO LEGAL – ABUSO DE AUTORIDADE CONFIGURADO (LEI N. 4898/65) – LESÕES CORPORAIS – INCAPACIDADE PARA AS OCUPAÇÕES HABITUAIS POR MAIS DE 30 (TRINTA) DIAS NÃO DEMONSTRADA EM EXAME COMPLEMENTAR – DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME PREVISTO NO CAPUT DO ART. 129, DO CP, EM CONCURSO MATERIAL – AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS – REFORMA DA REPRIMENDA, DE OFÍCIO – RECURSO DESPROVIDO – PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA, NA FORMA RETROATIVA DECLARADA, DE OFÍCIO.

Não é toda a conduta que produz sofrimento psíquico ou físico que implica a configuração do crime previsto no art. 1º, da Lei n. 9.455/97, mas somente aquela que, diante das circunstâncias fáticas, amolda-se à idéia de intensidade inerente ao conceito comum de tortura.

“Responde pelo delito do art. 3º, ‘i’, da Lei n. 4.898/65 a autoridade policial que fisicamente agride elemento detido” (TACRIM – SP – AC – Rel. Cunha Camargo – JUTACRIM 43/172).





Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 03.029651-4, da Comarca de Lebon Régis, sendo apelante Neylson Pinheiro Alvariza e apelada a Justiça Pública, por seu promotor:





ACORDAM, em Segunda Câmara Criminal, por votação unânime, conhecer do recurso, negar-lhe provimento, e, de ofício, dar nova capitulação ao delito, condenando o réu Neylson Pinheiro Alvariza à pena de 03 (três) meses e 10 (dez) dias de detenção, pelos delitos de abuso de autoridade e de lesões corporais, a serem cumpridos em regime aberto, substituída por uma restritiva de direitos, consistente na prestação de serviços à comunidade, e decretar extinta a pretensão punitiva do Estado, na forma retroativa.

Custas na forma da lei.

Na Comarca de Lebon Régis (Vara Única), o representante do Ministério Público ofereceu denúncia contra Neylson Pinheiro Alvariza, como incurso nas sanções do art. 1º, II, §§ 3º e 4º, I, da Lei 9.455/97, porque:

“No dia 19 de dezembro de 1999, por volta das 22 horas, o denunciado, na condição de policial civil, ocupante do cargo de Investigador de Polícia, lotado na município e Comarca de Lebon Régis, determinou à Polícia Militar que abordasse a vítima Gilberto Ribeiro Pedroso, porque ele, supostamente, estaria efetuando, diante da residência da então magistrada daquela comarca, a manobra conhecida como ‘cavalo de pau’, usando o veículo de sua propriedade, da marca Dodge Dakota, de placas CXN 0012.

“Os policiais, acionados, acompanharam a vítima até as dependências da Delegacia de Polícia local, onde, então, o denunciado Neylson, abusando de sua autoridade, fraseando em alto e bom tom, ‘quem manda aqui sou eu; eu faço a lei’, impingiu a Gilberto, o qual se encontrava, naquele momento, sob sua guarda, poder ou autoridade, violenta sessão de sofrimento físico e mental, com tapas, chutes e coronhadas, como forma de lhe aplicar castigo pessoal, culminando com as lesões contusas de natureza grave, com sangramento no pênis, sinais laterais na coxa, tórax, braços e pernas, o que fê-lo apresentar tonturas e risco de vida, em decorrência das lesões no couro cabeludo, descritas no Laudo Pericial” (fls. 02/03).

Concluída a instrução criminal, a denúncia foi julgada parcialmente procedente, condenando-se o réu às penas de 02 (dois) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, em regime inicialmente fechado e à perda do cargo de Investigador de Polícia, com a conseqüente interdição para o exercício de outro cargo público pelo prazo de 04 (quatro) anos e 08 (oito) meses, por infração ao preceito do art. 1º, inc. II e § 4º, inc. I, da Lei n. 9.455/97.

Inconformado, o réu apelou, aos argumentos de que suas ações não se coadunam com o tipo legal imputado, uma vez que agia sob o manto das excludentes de antijuridicidade, em estrito cumprimento do dever legal e em legítima defesa, tendo sido desprezadas as provas que lhe são favoráveis e que se verifica a ausência de fundamentação da pena de perda da função pública.

Nas contra-razões, manifestou-se o Ministério Público pelo não provimento do recurso e conseqüente manutenção da sentença proferida, subindo os autos a esta Instância, onde a douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer de lavra do Dr. Hipólito Luiz Piazza, opinou pelo conhecimento e provimento do recurso, para se absolver o réu das imputações que lhe são feitas.

É o relatório.

1. Tratam os presentes autos de crime capitulado no art. 1º, inciso II, §§ 3º e 4º, inciso I, da Lei 9.455/97, que define os delitos de tortura e dá outras providências.

Relatam as peças probatórias que, na noite do dia 19 de dezembro de 1999, Gilberto Ribeiro Pedroso foi detido por policiais militares, após realizar manobras perigosas, conhecidas como “cavalo de pau”, ao volante de sua camionete Dakota, cor preta, placas CXN-0012, em frente à antiga rodoviária de Lebon Régis, sendo encaminhado à Delegacia de Polícia daquele município. Na ocasião, enquanto aguardava para ser interrogado, foi abordado pelo Investigador da Polícia Civil Neylson Pinheiro Alvariza, que o agrediu com um tapa na cabeça, fazendo com que o chapéu que usava caísse e, tentando recolhê-lo, recebeu golpes de pontapés nas pernas e nos órgãos genitais, que lhe causaram sangramento, e coronhadas no braço esquerdo, na altura do cotovelo, no lado esquerdo da cabeça e no peito, conforme comprova o Auto de Exame de Corpo de Delito (fls. 22).

Preliminarmente, é mister discordar das alegações do apelante, ao afirmar que o contexto factual excluiu a antijuridicidade de suas ações, posto que o estrito cumprimento do dever legal e a legítima defesa não se encontram manifestados nas provas e depoimentos colhidos no processo.

Como bem afirmou o ilustre Parecerista, “tudo se passou no interior da Delegacia de Polícia daquela comunidade, estando ele com a proteção de dois policiais militares e no ‘comando’ da apuração dos fatos, nada indicando que qualquer interesse seu estivesse na ameaça de ser agredido” (fls. 202), o que restou fartamente atestado nos autos.

De outra parte, impende declarar que emana dos autos sub judice a descrição de delito diverso daquele previsto na Lei n. 9.455/97 (Lei de Tortura), o que impõe a análise da natureza e das características do delito no qual o apelante foi condenado.

O Brasil foi um dos últimos países, no mundo ocidental, a tipificar o delito de tortura como crime autônomo. A Constituição Federal de 1988, que reconheceu a prática de tortura como crime, aguardou que o Congresso Nacional, após quase 10 anos, produzisse uma legislação infraconstitucional, que, se não é a ideal, ao menos representa um avanço significativo do direito codificado brasileiro no resguardo e na garantia da dignidade do homem, pressuposto inserido na proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Muito embora a Lei n. 9.455/97 não tenha tratado o crime de tortura como especial, mas, sim, como crime comum, as normas de caráter internacional conferiram a ela um caráter protetivo dos direitos do cidadão face à conduta do funcionário público, na medida em que este abuse de seu poder no trato dos direitos e garantias fundamentais daquele. Nesse comportamento, agride não só ao cidadão individualmente considerado, como, também, à sociedade como um todo, que se vê ameaçada pelo desrespeito ao disciplinamento legal, justamente por aqueles que deveriam velar pela sua garantia. Tal condição constitui causa especial de aumento da pena, pois subverte a própria lógica do aparato legal, que, de guardião e protetor da lei, transforma-se em aniquilador de direitos.

Relevante destacar que, na conceituação de DÍAZ PITA acerca do delito de tortura, leva-se em consideração “aquelas situações nas quais o cidadão, titular de direitos fundamentais, encontra-se numa relação de sujeição ou de submissão de fato ao funcionário sem que seja estritamente necessário que ocorram no curso de uma investigação policial ou judicial”, pois, as condutas típicas “abarcarão não apenas a tortura inquisitória, isto é, aquela em que o funcionário persegue a obtenção de uma informação, mas, também, a tortura gratuita, ou seja, aquela que pressupõe um exercício de sadismo, por parte do funcionário sem nenhum fim especial” (El Bien Jurídico Protegido em los Nuevos Delitos de tortura y Atentado Contra la Integridad Moral – Estudios penales y criminológicos. Santiago de Compostela, v. XX, 1997, p. 49/50).

A Lei 9.455/97 traz a definição do que seja o crime de tortura. É tortura empregar violência ou grave ameaça, de modo a causar sofrimento físico ou mental, quando a violência ou a ameaça são utilizados com o fim de obter informações ou confissão da vítima ou de terceira pessoa. Também é tortura o uso daquela violência ou ameaça grave, para obrigar alguém a praticar um crime ou, ainda, quando são simplesmente motivadas por sentimento de discriminação racial ou religiosa. A primeira situação é caracteristicamente praticada por agentes do Estado, notadamente policiais; já as duas últimas situações alcançam qualquer cidadão, mesmo que não detenha a condição de autoridade pública.

A violência ou a ameaça grave, para constituir tortura, tem que ser de intensidade tal que provoque intensa dor física ou intenso sofrimento mental.

A lei equipara à prática de tortura a conduta de submeter pessoa presa ou detida a sofrimento físico ou mental mediante prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. Isto significa dizer, impor a alguém sofrimento ou constrangimento maior que aquele que a lei autoriza, como conseqüência ordinária de sua imposição. É conseqüência normal, por exemplo, o uso de algemas, a própria detenção e recolhimento a estabelecimento prisional, embora disso possa resultar um maior ou menor grau sofrimento e angústia.

Como se tem presente, o projeto de lei que combatia os crimes de tortura dormitou nos escaninhos legislativos por longo tempo, inobstante as reiteradas denúncias de emprego de violência pelas polícias civis e militares, na prevenção e repressão dos delitos, tendo sido forçado à positivação por conta das arbitrariedade praticadas por policiais militares da Favela Naval, em Diadema, no Estado de São Paulo, que, veiculadas, largamente, nas imprensas nacional e internacional, alavancaram a atuação do Congresso Nacional.

Essa contextualização histórica permite aquilatar a natureza do bem jurídico tutelado – a proteção dos direitos fundamentais do cidadão e do corpo social – e a estrutura e a gravidade dos delitos combatidos pela nova Lei.

Contudo, os autos não parecem emitir indícios no sentido de que seja esse o crime perpetrado pelo apelante, ao agredir fisicamente, nas dependências da Delegacia de Polícia, o cidadão Gilberto Ribeiro Pedroso. A uma, porque as motivações da violência não se encaixam nos termos dos artigos insculpidos na Lei que define os crimes de tortura; a duas, porque a intensidade pressuposta no escopo da Lei não ressumbra das provas dos autos.

Porém, quais são os parâmetros de aferição do sofrimento intenso? Certamente, os limites conceituais dos sofrimentos físico ou psicológico não poderiam ficar adstritos à legislação positivada, tendo em conta que a dinâmica humana é capaz de produzir um número tão imenso de espectros de sensibilidade física e psicológica quanto são as individualidades humanas. É atribuição do julgador, reconstruindo o cenário do evento delituoso, diagnosticar a relação de sujeição das partes e aquilatar o impacto que a violência – física ou moral – exerceu sobre a vítima.

Como bem salientado pela doutrina:

"Não obstante procure atingir um número limitado de situações, o processo de tipificação mostra-se defeituoso diante da impossibilidade de reduzir a infinita gama de atos humanos a fórmulas estanques. Por tal motivo, o processo legislativo de tipificação é realizado de forma abstrata, alcançando também o que Engish chama de casos anormais. A imperfeição do trabalho legislativo faz com que possam ser consideradas formalmente típicas condutas que, na verdade, deveriam estar excluídas do âmbito de proibição estabelecido pelo tipo penal" (Maurício Antônio Ribeiro Lopes, O Princípio da Insignificância no Direito Penal, SP: RT, 1997, p.62).

No caso em tela, conquanto violenta e danosa a conduta realizada, ela não chega a configurar o intenso sofrimento psíquico ou físico necessário à configuração do crime de tortura. Ora, sendo um crime doloso, o delito de tortura, previsto no art. 1º, da Lei n. 9455/97, exige, necessariamente, não apenas a ciência do agente de que sua conduta impõe um elevado sofrimento à vítima (elemento cognitivo), mas, também, a vontade de produzir dor, moral e física (elemento volitivo). Em relação a este fato, não há indicativos de que fosse essa a intenção do agente e nem de que sua atitude tenha produzido dor moral característica daquilo que se entende como tortura.

A tortura, segundo a lição de JARBAS BEZERRA, citando De Plácido e Silva, é “o sofrimento ou a dor provocada por maus-tratos físicos ou morais. É ato desumano, que atenta à dignidade humana. É o sofrimento profundo, angústia, dor. Torturar a vítima é produzir-lhe um sofrimento desnecessário. É tornar mais angustiante o sofrimento” (Tortura: mecanismo arbitrário de negação da cidadania”, Lidador, 2001, p. 26).

Não é demais lembrar que, em tese, todas as condutas típicas produzem, em maior ou menor grau, certa dor psíquica à vítima; porém, isso não implica que, associada a qualquer prática delitiva, haja, também, a realização da tortura.

Tema de idêntica reflexão já foi abordado em acórdão de lavra deste relator:

“Não é toda a conduta que produz sofrimento psíquico ou físico que implica a configuração do crime previsto no art. 1º, da Lei n. 9.455/97, mas somente aquela que, diante das circunstâncias fáticas, amolde-se à idéia de intensidade inerente ao conceito comum de tortura” (n. 00.023932-1, de Santa Cecília, j. 25.06.2002).

De outra parte, a agressão física, com evidentes lesões corporais, é eloqüente. Assim, analisados, os elementos descritos nos autos melhor se afeiçoam à previsão legal contida no art. 3º. “i”, da Lei n. 4.898/65, que trata dos casos de abuso de autoridade cometido contra a incolumidade física do indivíduo.

A Lei n. 4898/65, que trata do abuso de autoridade (ou de poder) cometidos por agentes públicos, preceitua, no seu artigo 5º, que autoridade será qualquer pessoa que exerça cargo, emprego ou função pública, de natureza civil ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração.

"Abuso" será qualquer atentado aos direitos e garantias individuais realizado sem estar de acordo com a legislação, seja pelo excesso praticado em uma ação, ou pelos meios empregados. Assim, a condução de um preso em flagrante algemado não configurará, em princípio, o abuso. Ocorrerá, entretanto, se o preso vier amarrado pelo pescoço, ou atado a outros pela cintura com o objetivo de reduzi-los a condição semelhante à de animais. Ainda, a "revista" procedida por policiais em blitz ou ao entrar em presídios ou cadeias públicas, se realizadas com toque em partes íntimas ou com objetivo de constranger a vítima, são abusivas. Também, o espancamento, a humilhação e a prisão sem justa causa configuram abusos, carecendo da aplicação dos meios jurídicos adequados.

No caso, a materialidade é evidente e desponta do Auto de Exame de Corpo de Delito, do qual consta que os peritos, ao examinarem a vítima, Gilberto Ribeiro Pedroso, de 25 anos, encontraram “lesões contusas com sangramento no pênis, com sinais nas laterais da cocha, compatíveis com fricção através de sapato ou botina, tendo detectado, também, lesões no tórax, braços e pernas” (fls. 12), acrescentando, nos respectivos quesitos, que as lesões resultaram em “incapacidade para as ocupações habituais por mais de 30 dias, perigo de vida, por apresentar tonturas e lesões no couro cabeludo e probabilidade de seqüelas futuras tais como distúrbio sexual e possibilidade de incapacidade permanente para o trabalho, enfermidade ou deformidade incurável, a depender da evolução do quadro”. As fotos que acompanham o laudo também são eloqüentes, retratando as equimoses da vítima e o sangramento verificado na região do pênis (09/11).

A autoria das lesões, por sua feita, é de se concluir, com base nos depoimentos, inclusive nos relatos do apelante, nas provas técnicas e no encadeamento lógico dos fatos, apontando o réu Neylson Pinheiro Alvariza como o agente causador das lesões descritas no Auto de Exame de corpo Delito.

Na fase investigatória, a vítima relatou, em detalhes, a prática delitiva. Consoante suas palavras, na noite dos fatos, na delegacia, encontrava-se bastante nervoso, e, ao pedir um cigarro a Neylson, ele respondeu que “esses vagabundos vem aqui fazer arruaças na cidade dos outros e ainda querem exigir”, dando-lhe uns tapas na cabeça, fazendo cair o seu chapéu. Gilberto, então, indagou o porquê de seu comportamento, afirmando que conhecia seus direitos, e, ao pegar o chapéu do chão, foi, novamente, agredido por Neylson, com um pontapé na perna esquerda, dizendo “quem manda aqui sou eu; eu faço a lei”. Em seguida, deu um empurrão na vítima e um pontapé em seus órgãos genitais e, apresentando uma pistola, bateu em seu braço esquerdo, no peito e na cabeça. Ainda com a pistola em punho, dizia para ele reagir, pois queria lhe dar um tiro, quando, então, Gilberto disse que não poderia agir assim e que queria um advogado, tendo o apelante respondido “que não tinha direito a nada, pois a lei era ele mesmo” (fls. 32/33).

Os dois companheiros da vítima, Evandro Antônio da Luz e Rodrigo Lisboa Leolatto, então presentes, pediram que parasse com as agressões, ao argumento de que estava abusando de sua autoridade, ao que Neylson vociferou que “aqui quem faz a lei sou eu e que os vagabundos de Santa Cecília só vêm fazer arruaças aqui e aqui não é Santa Cecília” e “que era para fazer arruaças em frente ao ‘chiqueirão’ do Aero Dance” (fls. 34/37).

Em juízo, ratificaram tais declarações (fls. 84/85, 100).

O réu, por sua vez, informa que, no dia dos fatos, estava na casa de sua namorada, quando observou as manobras perigosas efetuadas pela camionete –“cavalos de pau” – solicitando, então, à Polícia Militar, que fizesse a abordagem do condutor. Chegando à Delegacia, a vítima agiu com descaso para com a sua pessoa, de maneira “folgada”, tendo exigido um cigarro para responder sobre quem estava dirigindo o veículo. Ao pedido para que retirasse o chapéu, respondeu que não, porque Neylson não mandava nele. Como entendeu que sob o chapéu poderia haver alguma coisa escondida, foi até a vítima e o retirou, colocando-o sobre a mesa, quando, então, Gilberto avançou na cintura do réu, onde estava a arma, tendo ele se defendido, segurando a mão da vítima com uma mão e, com a outra, empurrando-a contra a parede. Nega, entretanto, que a tenha agredido com socos, pontapés ou coronhadas de revólver e que, ao retirar a vítima da cela para levá-la ao hospital, onde fez o exame de teor alcoólico, ela se jogou contra as grades e, na viatura policial, se bateu bastante (fls. 68/69).

Os testemunhos defensivos dos dois policiais presentes no local dos delitos são idênticos e no sentido de negar a autoria das ações criminosas, declarando desconhecerem a origem dos ferimentos da vítima.

De pronto, as alegações do réu e dos testemunhos em sua defesa se mostram insubsistentes e não merecem crédito. A violência configurou-se desnecessária ante a situação e, afirmar que os ferimentos foram provocados pela própria vítima é, no mínimo, desprezar os limites do razoável e do plausível, até porque, tem-se por certeza de que esses flagelos, se auto-imolados fossem, não se dariam na região de seus órgãos sexuais. Ademais, consta dos autos o depoimento de Rubem José Tomé Filho, Delegado de Polícia de Lebon Régis, que não estava presente no dia dos fatos, mas afirmou ter, por duas vezes, orientado o apelante, por via telefônica, a intimar Gilberto a comparecer à delegacia no dia seguinte e liberá-lo, retendo o veículo, sendo, porém, procurado pela vítima no dia posterior aos fatos, que lhe relatou as agressões sofridas, mostrando-lhe os ferimentos (fls. 133).

Embora reprovável a conduta do agente, as provas não indicam que ele quisesse impor sofrimento intenso à vítima, mas apenas que houve excesso – ainda que grave – no seu proceder, o que configura o abuso de autoridade, consubstanciado na incidência da alínea “i”, do art. 3º, da Lei n. 4898/65, vale dizer, “atentado à incolumidade física do indivíduo”, cumulado com o crime de lesões corporais leves, previsto no art. 129, do Código Penal, tendo em conta que a vítima não foi submetida ao exame complementar exigido pelo § 2º, do art. 168, do Código de Processo Penal.

Vale destacar que, não obstante exista divergência jurisprudencial sobre o tema, é de se adotar a corrente para qual “o crime de abuso de autoridade não pode ser absorvido pelo de lesões corporais, pois a Lei 4.898/65 tem por objetivo resguardar os direitos constitucionais integrantes da cidadania, de eventuais abusos por parte de qualquer pessoa que exerça autoridade pública, finalidade esta diversa da do art. 129 do CP” (TACRIMSP – ACr 820.097 – 1ª C. – Rel. Juiz Eduardo Goulart – j. 05.05.1994).

Logo, embora afastada a possibilidade de aplicação da Lei n. 9.455/97, os fatos praticados pelo apelado configuram, sim, os crimes de abuso de autoridade e lesões corporais, que, embora não indicados na inicial, subsumem-se aos fatos narrados na denúncia. Registre-se, por oportuno, que, desclassificada a conduta para aqueles crimes, a queixa oferecida pela vítima pode ser aproveitada, como representação, também, para os fins do art. 88, da Lei n. 9.099/95, embora visasse ao crime da lei especial.

Neste entendimento, vide Ap. crim. n. 99.001134-8, de Turvo, rel. Des. Maurílio Moreira Leite, j. 14.03.2001, em cuja fundamentação se deixou consignado que, “tratando-se de lesão corporal de natureza leve, indispensável a representação da vítima, nos termos do artigo 88, da Lei n. 9.099/95, a qual se encontra nos autos, emergente dos depoimentos que prestou, contundentes e incisivos, em clara demonstração de pretender a persecução penal. E, como é sabido, à representação não é exigida forma sacramental”.

Por essa razão, a reprimenda aplicada pelo ilustre magistrado, na sentença, deve ser reformada. Nesse norte, mantida a análise das circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal realizada pelo nobre julgador, fixa-se a reprimenda no mínimo legal para ambos os delitos – 10 (dez) dias de detenção para o de abuso de autoridade e 03 (três) meses de detenção para o de lesões corporais. Inexistem agravantes e atenuantes, bem como ausente qualquer circunstância especial de aumento ou diminuição em ambos os crimes, de modo que a pena, ao final, deve ser fixada em 03 (três) meses e 10 (dez) dias de detenção, a ser cumprida em regime aberto, por força do art. 33, § 2º, “c”, do Código Penal.

Em face do que dispõe o art. 44, § 2º, primeira parte, a pena privativa de liberdade é substituída por uma restritiva de direitos, na modalidade de prestação de serviços à comunidade.

Em virtude da pena cominada aos crimes, individualmente, verifica-se que o prazo da prescrição da pretensão punitiva do Estado encerra-se em 02 (dois) anos, consoante redação expressa do art. 109, inc. VI, do Código Penal, uma vez que a denúncia foi recebida em 1º de dezembro de 2000 (fls. 53 v.) e a sentença condenatória restou publicada em 30 de julho de 2003 (fls. 164 v.), transcorrendo, então, lapso temporal superior ao anteriormente assinalado, devendo, de ofício, ser declarada a extinção da punibilidade do agente.

Assim, diante do exposto, nega-se provimento ao recurso e, de ofício, desclassifica-se a conduta delituosa de prática de tortura para o crime de abuso de autoridade cumulado com o de lesões corporais leves, adequando-se a reprimenda e, em razão disso, reconhecendo-se a prescrição da pretensão punitiva do Estado.

2. Diante do exposto, decidiu a Segunda Câmara Criminal, por votação unânime, conhecer do recurso, negar-lhe provimento, e, de ofício, dar nova capitulação ao delito, condenando o réu Neylson Pinheiro Alvariza à pena de 03 (três) meses e 10 (dez) dias de detenção pelos delitos de abuso de autoridade e de lesões corporais, a serem cumpridos em regime aberto, substituída por uma restritiva de direitos, consistente na prestação de serviços à comunidade, e decretar extinta a pretensão punitiva do Estado, na forma retroativa.

Participou do julgamento, com voto vencedor, o Exmo. Sr. Des. Torres Marques e lavrou parecer pela douta Procuradoria-Geral de Justiça o Exmo. Sr. Dr. Hipólito Luiz Piazza.

Florianópolis, 27 de abril de 2004.

SÉRGIO PALADINO

Presidente

IRINEU JOÃO DA SILVA

Relator


Parecer do Acadêmico Marcelo Piazza Sassi


Direito Diurno – 5ª Fase


No julgado em questão, percebe-se uma nítida visão conservadora, por parte dos desembargadores, de quais condutas são caracterizadas como crime de tortura ou não. As agressões a que o civil Gilberto Ribeiro Pedroso foi submetido, durante a sua permanência na delegacia de Polícia e comprovadas pelo laudo pericial, são claras e denotam o elevado grau de violência com que o agente público se muniu para, nos termos da Lei 9.455/97, Art. 1º, II, “aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo” à vítima. Além das evidências físicas supramencionadas, somam-se à conduta do apelante afirmações de cunho explicitamente arbitrário, tais como “Quem manda aqui sou eu; eu faço a lei” ou “Ninguém tem direito a nada, pois a lei sou eu”, o que, por si só, já é suficiente para caracterizar o delito de abuso de autoridade.


Diante de tais fatos, o Tribunal surpreendentemente decidiu pela descaracterização do crime de tortura, afirmando que “embora reprovável a conduta do agente, as provas não indicam que ele quisesse impor sofrimento intenso à vítima, mas apenas que houve excesso – ainda que grave – no seu proceder”, condenando o apelante pela prática de abuso de autoridade e lesões corporais leves.


Trata-se, ao meu ver, de uma decisão lamentável e incompatível com os princípios – nesse caso a dignidade da pessoa humana - defendidos pela atual ordem democrática, pois, além de legitimar a violência realizada pelos agentes públicos em detrimento dos cidadãos como algo rotineiro, põe em contradição a própria função e finalidade do Estado, qual seja, a de proporcionar uma sociedade segura, na qual as pessoas possam exercer seus direitos e realizar seus deveres sem se utilizar da violência/intimidação como instrumento para alcançá-los.

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