quinta-feira, 8 de abril de 2010

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ALUNO: MATEUS ERDTMANN


PESQUISA JURISPRUDENCIAL


Dados do acórdão

Classe: Apelação Criminal

Processo: 2000.023932-1

Relator: Irineu João da Silva

Data: 25/06/2002
No caso em tela, foi oferecida denúncia contra o Delegado de Polícia, Antônio Rogério Ribeiro, pelos crimes de abuso de autoridade e tortura. Em resumo, o relatório narra que o denunciado entrou na casa da vítima Aurino Alves de Oliveira, no exercício de sua função, devido a um chamado para averiguar uma briga de casal, momento em que o Delegado apontou uma arma para a vítima, e a agrediu, levando-a em seguida para a delegacia de polícia, onde a amarrou e agrediu novamente de diversas maneiras, causando-lhe grave sofrimento físico e mental, sendo que a vítima ficou com diversas marcas e hematomas pelo corpo. Ainda na mesma noite, o mesmo denunciado praticou mais condutas criminosas contra outras pessoas, o adolescente Carlos Ribeiro e seus irmãos, que foram agredidos com o objetivo de entregarem uma arma que estava na casa deles.

No julgamento, no que tange ao primeiro caso, foi apreciado somente o crime de tortura, pois quanto ao crime de abuso de autoridade observou-se a prescrição do mesmo pelo decorrer do tempo, que excedeu o delimitado pela lei para o caso concreto, sendo o denunciado sentenciado à pena de 2 anos e 11 meses de reclusão. No segundo caso, afastou-se a possibilidade de condenação pelo crime de tortura, pois decidiu-se que o sofrimento causado pelas agressões não foi de tamanha grandeza para que se justificasse uma condenação por tal norma jurídica. Porém, apesar de não requisitada na inicial, foi imputado ao Delegado o crime de lesão corporal, visto a constatação de tal atitude típica no depoimento das vítimas, sendo o acusado condenado à pena de 6 meses por este último crime. Como o decurso do tempo era suficiente para determinar a prescrição deste último, a pena do acusado foi fixada em 2 anos e 11 meses de reclusão, mais a perda do cargo público exercido e a interdição para o exercício de cargo, função ou emprego público pelo dobro do prazo da pena aplicada, observados pela condenação no crime de tortura contra Aurino Alves de Oliveira.





ÍNTEGRA DO ACÓRDÃO



Apelação criminal n. 00.023932-1, de Santa Cecília.

Relator: Des. Irineu João da Silva.

TORTURA (LEI N. 9.455/97) ¿ ABUSO DE AUTORIDADE (LEI N. 4898/65) ¿ LESÕES CORPORAIS (ART. 129, DO CP) ¿ DISTINÇÃO ¿ ABSOLVIÇÃO EM PRIMEIRO GRAU ¿ RECURSO DA ACUSAÇÃO ¿ PROVA ¿ PALAVRAS DO OFENDIDO ¿ TESTEMUNHAS ¿ ÁLIBI INSUBSISTENTE ¿ PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DAS PROVAS ¿ CONDENAÇÃO.

Não é toda a conduta que produz sofrimento psíquico ou físico que implica a configuração do crime previsto no art. 1o, da Lei n. 9.455/97, mas somente aquela que, diante das circunstâncias fáticas, amolde-se à idéia de intensidade inerente ao conceito comum de tortura.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de apelação criminal n. 00.023932-1, da comarca de Santa Cecília (Vara Única), em que são apelantes a Justiça Pública, por seu Promotor, e o Assistente do Ministério Público, sendo apelado Antônio Rogério Ribeiro.

ACORDAM, em Segunda Câmara Criminal, por votação unânime, conhecer do recurso e dar-lhe provimento parcial, para condenar Antônio Rogério Ribeiro ao cumprimento da pena de 02 (dois) anos e 11 (onze) meses de reclusão, em regime inicialmente fechado, mais a perda do cargo público exercido e a interdição para o exercício de cargo, função ou emprego público pelo dobro do prazo da pena aplicada.

Custas na forma da lei.

Na comarca de Santa Cecília, o representante do Ministério Público ofereceu denúncia contra Antônio Rogério Ribeiro, pela prática do crime previsto no art. 4º, alínea 'a', da Lei 4.898/65, em concurso material com os crimes descritos no art. 1º, inciso I; art. 1º, § 1º e art. 4º, incisos I e II, da Lei n. 9.455/97, em continuidade delitiva, com base nos fatos assim descritos na inicial:

¿No dia 07 de agosto de 1998, por volta das 23h, o denunciado, exercendo as atividades de Delegado de Polícia, invadiu a residência da vítima Aurino Alves de Oliveira, localizada na COHAB, neste Município, encostou uma arma no pescoço da vítima e mandou encostar na parede com os braços levantados, oportunidade em que a mesma foi revistada, nada sendo encontrado.

¿Ato contínuo, o denunciado ordenou a prisão da vítima, que foi conduzida na parte traseira do camburão.

¿Chegando ao destacamento da Polícia Militar, o denunciado empurrou a vítima Aurino com o cacetete, e desferiu vários chutes, puxou a vítima pelo pescoço e a levou até uma garagem.

¿Na seqüência de seu intento criminoso, o denunciado encostou Aurino em um carro, e desferiu por todo o corpo da vítima vários golpes com um cacetete, até a vítima não mais conseguir ficar de pé.

¿Não satisfeito com a tortura perpetrada, o denunciado algemou a vítima Aurino e a pendurou, continuando a desferir vários golpes de cacetete nas costas e nádegas, causando-lhe intenso sofrimento físico, conforme descreve o auto de exame de corpo de delito de fl. 11, e fotografias de fls. 20.

¿Na continuidade, o denunciado disse à vítima para pedir desculpas aos policiais, pelo fato de a mesma ter importunado e a mandou embora.

¿No dia seguinte, 08 de agosto de 1998, por volta das 00h e 15 mi¿No dia seguinte, 08 de agosto de 1998, por volta das 00h e 15 min, no Salão do Nelson, localizado nesta cidade, o denunciado, utilizando-se de ameaças realizadas com um cacetete, apertou a garganta do adolescente Carlos Ribeiro, constrangendo-o, com violência e graves ameaças, a fim de obter informação acerca da propriedade de uma arma, momento em que o adolescente disse que o proprietário era o vereador Marcos Franzon.

¿Na seqüência, após passar pela residência do vereador Marcos, o denunciado, juntamente com a vítima Carlos dirigiu-se à residência dos irmãos do adolescente.

¿Lá chegando, o denunciado encostou uma arma na cabeça do adolescente e ordenou que fosse entregue um revólver e que os irmãos do adolescente nada fizessem, senão estouraria os miolos do menor, constrangendo, destarte, os irmãos do adolescente, com emprego de grave ameaça, a informar o local em que estava uma arma de fogo.

¿Nesta ocasião, o denunciado desferiu vários socos e pontapés nos que na residência se encontravam, as vítimas Aloir Ribeiro, Adenir Ribeiro e Francisco de Assis Pires, momento em que o denunciado encontrou a arma e os prendeu em flagrante delito¿ (fls. 3/5).

Finda a instrução, o Dr. Juiz de Direito proferiu sentença, absolvendo o réu da imputação que lhe foi feita, com fundamento no art. 386, VI, do Código de Processo Penal.

Inconformados com o decreto absolutório, interpuseram recurso de apelação o órgão ministerial e o assistente de acusação, postulando a sua reforma, a fim de ver o réu condenado nos termos da inicial, ao argumento de que há nos autos provas suficientes à condenação. Suscita, ainda, o assistente da acusação, em preliminar, a suspeição do juiz prolator, em face da amizade que possui com o réu.

Com as contra-razões, ascenderam os autos a esta Corte.

Instada a manifestar-se, fê-lo a douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da lavra do Dr. Valdir Vieira, pelo provimento parcial do apelo, para condenar o apelado nas sanções do art. 4º, alínea 'a', da Lei n. 4.898/65 em concurso material com o art. 1º, §§ 1º e 4º, inciso I, da Lei 9.455/97.

Nesta instância, o Ex.mo. Sr. Des. Torres Marques declarou-se suspeito (fls. 373), por motivos de foro íntimo, e o Ex.mo. Sr. Des. Sérgio Paladino, impedido (fls. 387).

É o relatório.

1. Aduz o assistente ministerial a suspeição do magistrado sentenciante, alegando que ele, titular da vara, teria se afastado do processo durante a instrução, ¿delegando-a¿ à juíza substituta e retornando, apenas, para absolver o agente, ora apelado. Todavia, não há, nos autos, nenhum indicativo da veracidade dessa afirmativa. Além disso, não só o magistrado recebeu a denúncia, como também procedeu ao interrogatório do réu e tomou diversas outras medidas durante todo o processo, fatos que não são compatíveis com a alegada ¿suspeição informal¿ do magistrado.

Ademais, não bastassem a ausência de provas do alegado e a total inadequação da via eleita pelo apelante, é de se registrar que eventual respeito profissional ou amizade existente entre o magistrado e o delegado não implicam a intimidade necessária à configuração da causa de suspeição. CAdemais, não bastassem a ausência de provas do alegado e a total inadequação da via eleita pelo apelante, é de se registrar que eventual respeito profissional ou amizade existente entre o magistrado e o delegado não implicam a intimidade necessária à configuração da causa de suspeição. Como bem recorda Fernando Capez, ¿por amizade íntima deve ser entendida aquela que uma pessoa nutre por outra, como se fosse um parente próximo, tornando-o capaz de suportar toda a sorte de sacrifícios pelo outro. Somente este tipo de amizade pode ser classificada como causa de suspeição. No caso de relações de simples cortesia e apreço profissional por advogado, não autorizam presumir a quebra da imparcialidade que deve presidir os atos do magistrado¿ (Curso de Processo Penal, 6a ed. rev., SP: Saraiva, 2001, p. 318).

2. Registre-se, ainda preliminarmente, que o exame do mérito em relação ao crime de abuso de autoridade (art. 4o, ¿a¿, da Lei n. 4898/1965) está prejudicado, dada a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva, em sua forma retroativa. É que, inocorrendo marco interruptivo em face da sentença absolutória, do recebimento da denúncia (19.07.1999, fls. 177) até a presente data, já decorreram mais de 02 (dois) anos, lapso temporal fixado como limite para a apuração da responsabilidade criminal do agente, nos exatos termos do art. 109, VI, do CP, visto que a pena máxima cominada é de apenas 06 (seis) meses.

Portanto, no caso em tela, o exame dos fatos será realizado apenas com o fim de se apurar a existência, ou não, do imputado crime de tortura, que, diante do texto constitucional, é imprescritível.

3. Ultrapassadas as questões prévias, verifica-se que, no mérito, razão parcial cabe aos apelantes.

Senão, vejamos.

Os autos indicam que, em 07.08.1998, por volta das 23h00minn, o apelado, no exercício de suas funções de Delegado de Polícia, a pretexto de cumprir investigação sobre alegada briga de casais, ingressou na residência de Aurino Alves de Oliveira, e, encostando uma arma no pescoço da vítima, realizou busca pessoal, não logrando encontrar nenhum objeto ilícito. Ato contínuo, o apelado deu voz de prisão à vítima, levando-a até o destacamento da Polícia Militar, onde, mediante empurrões e agressões com cacetete, levou-a à garagem, para, em seguida, desferir, por todo o corpo do preso, vários golpes com um cacetete, até que este não mais conseguisse ficar de pé. Neste instante, na seqüência de seu mister criminoso, ele algemou Aurino e o pendurou, continuando a desferir vários golpes de cacetete nas costas e nádegas deste, causando-lhe intenso sofrimento físico e psíquico. Finda a sessão de agressões, o denunciado ordenou que a vítima saísse do local, pedisse desculpas aos outros policiais, que estavam dentro do destacamento, e retornasse à sua casa.

Embora denunciados outros fatos conjuntamente a estes, a análise deve ser feita em separado, diante de sua dessemelhança típica, até porque foram processados conjuntamente apenas em razão da conexão probatória.

No tocante à conduta realizada contra a Aurino Alves de Oliveira, o apelado, interrogado na fase policial, disse, em síntese, que estava sofrendo uma perseguição política, afirmando que, em relação a Aurino, apenas foi até a residência dele para apurar um chamado relativo a uma briga doméstica e que o alegado ferimento decorreu de um ¿tombo¿ quNo tocante à conduta realizada contra a Aurino Alves de Oliveira, o apelado, interrogado na fase policial, disse, em síntese, que estava sofrendo uma perseguição política, afirmando que, em relação a Aurino, apenas foi até a residência dele para apurar um chamado relativo a uma briga doméstica e que o alegado ferimento decorreu de um ¿tombo¿ que a vítima sofreu ao sair de casa; assinalou, inclusive, que tentou segurá-lo para que não caísse, acabando por rasgar a camisa do pretenso ofendido (fls. 74/84). Em juízo, manteve a sua versão (fls. 181/182).

Sustentando a sua versão, os policiais militares Walter Dolberth da Silva (fls. 53/54 e 248/249), Antônio Carlos de Oliveira (fls. 55/56 e 257/258), Paulo Roberto Popeng (fls. 57/59 e 259/260), Célio dos Santos (fls. 60/62 e 250/251), Nilson Carlos Teles de Souza (fls. 63/64 e 255/256) e Sebastião Corrêa de Oliveira (fls. 69/70) disseram, tanto na etapa inquisitiva quanto em juízo, - o último somente no inquérito - que, no dia dos fatos, estavam na cozinha do destacamento da polícia militar e nada viram de anormal. Além disso, os quatro primeiros afirmaram que, junto com o acusado, foram até a residência da vítima Aurino para atender um chamado, que dava conta de briga dele com sua mulher, inclusive com ameaça de morte; negaram, contudo, que tenha havido agressão contra a pessoa detida.

Sabe-se que, em regra, as palavras dos policiais têm presunção de veracidade; porém, no caso em tela, há certas circunstâncias que lhes retiram o valor. Com efeito, não bastasse o fato de todos os testemunhos serem idênticos, há dois fatos nos autos que apontam para a existência de um ¿espírito corporativo¿, que, por certo, induziu aos depoentes a darem determinado padrão de resposta.

O primeiro fato peculiar consiste na condução do inquérito policial, que, dadas a parcialidade e a forma distinta de realização, levaram, inclusive, à Corregedoria-Geral da Polícia Civil a concluir, em processo administrativo concernente aos fatos, que ¿a autoridade processante do Inquérito Policial não se houve corretamente quanto à técnica na apuração dos fatos (..) conduzindo de maneira parcial, em tese, a apuração da responsabilidade (..) assim, através do diretor da DPI, proceda-se advertência¿ (fls. 202).

O segundo decorre da bem lançada observação indicada pela magistrada que presidiu a instrução do processo, que, em termo de assentada da audiência de oitiva das testemunhas policiais, deixou consignado que ¿a testemunha Nilson Carlos Teles de Souza disse, inicialmente, em seu depoimento, que a vítima Aurino reclamara que havia sido espancada, negando ter dito tal fato após a chegada do réu na sala, que se atrasara¿ (fls. 254); fato que indica, claramente, a mudança no depoimento da testemunha em razão da presença física do acusado.

De outra parte, sustentando a versão acusatória, tem-se, nos autos, não apenas as palavras do ofendido, que admitiu a briga com sua esposa, mas também, e principalmente, os depoimentos de diversas testemunhas que, narrando fatos circunstanciais, indicam, em seu conjunto, a veracidade da narrativa daquele.

Assim é que Elizete Novaes dos Santos, vizinha de Aurino, afirmou, na fase policial e em juízo, que, de sua casa, presenciou toda a operação policial, mas que a vítima não teria levado nenhum tombo (como alega o apelado) e que, na manhã seguinte, esta apresentava diversos ferimentos pelo corpo e passou o dAssim é que Elizete Novaes dos Santos, vizinha de Aurino, afirmou, na fase policial e em juízo, que, de sua casa, presenciou toda a operação policial, mas que a vítima não teria levado nenhum tombo (como alega o apelado) e que, na manhã seguinte, esta apresentava diversos ferimentos pelo corpo e passou o dia gemendo (fls. 121/122 e 210). Aliás, os policiais Walter Dolberth da Silva e Célio dos Santos também disseram que não viram o alegado tombo, o que reforça a tese acusatória e retira valor da versão apresentada pelo acusado, ora apelado.

Ainda em relação aos ferimentos causados à vítima, há, nos autos, exame pericial (fls. 19) e fotografias (fls. 28) certificando que Aurino Alves de Oliveira foi, realmente, agredido. Juntem-se, ainda, os depoimentos de Cínthia de Los Santos (fls. 264) e Plínio César Moreira (fls. 265), respectivamente juíza e promotor da comarca de Curitibanos, procurados em razão da ausência momentânea de autoridades similares na cidade dos fatos, que viram, no dia seguinte ao ocorrido, os ferimentos causados à vítima, tendo, inclusive, a magistrada dito que ¿o cidadão mostrou vários hematomas que apresentava na região glútea e nas coxas¿ e ¿foi aconselhado ao cidadão que fizesse exames médicos para constatar os hematomas¿.

Acresce-se o depoimento de Pedro Paulo Goetten, que, no dia dos fatos, estava passando, a pé, em frente ao destacamento policial, quando escutou batidas e gemidos vindos da garagem daquele local (onde estavam o acusado e a vítima), tendo, inclusive, visto, na ocasião, o Delegado de Polícia (fls. 211). O testemunho de Waldevino Santos Rodrigues, embora tomado somente na fase policial, indica que, também passando pelo local, percebeu a movimentação na garagem do destacamento policial e ¿notou que, no último palanque do destacamento, parecia estar um elemento amarrado e que os policiais andavam de um lado para outro com um comportamento estranho, causando-lhe a impressão de que estavam aplicando um castigo¿ (fls. 123).

Ora, todo esse conjunto de provas indica que, ao contrário do alegado pela defesa, houve, sim, a prática da sessão de tortura a que foi submetido Aurino Alves de Oliveira, incidindo, assim, o tipo penal previsto no art. 1o, §1o, da Lei n. 9.455/97, in verbis: ¿Art. 1º. Constitui crime de tortura: (..) quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal¿.

Registre-se que se dá definição jurídica diversa da classificada pela acusação (art. 383, do CPP), em face da ausência do especial ¿fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa¿ (art. 1o, I, ¿a¿, da Lei n. 9455/97), porquanto, no caso, não havia essa intenção do agente, mas, pelo que evidenciam os autos, somente o de causar o agudo sofrimento físico e moral da vítima.

Além disso, dado que o fato ocorreu em razão do ofício do agente, embora exorbitando (e muito) suas atribuições legais, tem-se presente a causa especial de aumento contida no inc. I do §4o do art. 1o da referida lei, nesses termos vertido ¿Aumenta-se a pena de um sexto até um terço: se o crime é cometido por agente público¿.

Como se vê, ainda que a defesa tenha trazido um número grande de testemunhas em favor do apelado, os elementos de convicção coletados levam à certeza necessária à coComo se vê, ainda que a defesa tenha trazido um número grande de testemunhas em favor do apelado, os elementos de convicção coletados levam à certeza necessária à condenação, até porque, no sistema processual penal brasileiro, as provas trazidas aos autos têm o mesmo valor, sendo lícito ao Magistrado, quando da prolação da sentença, adotar uma ou outra versão, desde que devidamente comprovadas e fundamentadas.

Discorrendo sobre o sistema de valoração da prova adotado por nosso Código de Processo Penal (persuasão racional) preleciona VICENTE GRECO FILHO:

¿Esse sistema, em primeiro lugar, dá a lei liberdade de apreciação, ou seja, as provas não têm valor predeterminado nem peso legal. Cada circunstância de fato será apreciada no contexto das demais provas e pode valer mais ou menos segundo o entendimento não preordenado do Juiz. Em segundo lugar, porém, limita a lei esse convencimento e a apreciação aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, segundo o princípio id quod non est in acits nom est in mundus (o que não está nos autos não existe). Consagra-se, aí, o princípio da verdade formal, ou seja, o juiz decidirá segundo a verdade dos autos e não segundo a verdade da natureza (verdade real)¿ (Manual de Processo Penal, SP: Saraiva, 1995, p. 190).

No mesmo sentido, a lição de JULIO FABBRINI MIRABETE:

¿Adotou a lei o princípio do livre convencimento (ou livre convicção, ou da verdade real), segundo o qual o juiz forma sua convicção pela livre apreciação da prova, não ficando adstrito a critérios valorativos e apriorísticos e é livre em sua escolha, aceitação e valoração. `Todas as provas são relativas; nenhuma delas terá, ex vi legis, valor decisivo, ou necessariamente maior prestígio que outra. Se é certo que o juiz fica adstrito às provas constantes dos autos, não é menos certo que não fica subordinado a nenhum critério apriorístico no apurar, através delas, a verdade material. O juiz criminal é, assim, restituído à sua própria consciência¿ (Exposição de Motivos, item VII).¿ (Código Processo Penal Interpretado, 7ª ed., SP: Atlas, 2000, p. 414).

4. Em relação aos fatos ocorridos quando da ¿batida¿ realizada em vários estabelecimentos comerciais, tem-se que restaram comprovadas as agressões contra Carlos Ribeiro, Marcos Franzon, Aloir Ribeiro e Adelir Ribeiro.

Os autos indicam que, no dia seguinte ao da sessão de tortura impingida a Aurino ¿ mas ainda na mesma noite ¿, por volta de 00h15 min, no Salão do Nelson, durante a realização de uma ¿batida¿ em vários estabelecimentos comerciais, o apelado, após constatar que o adolescente Carlos Ribeiro portava duas cápsulas de pistola, deflagradas, utilizando-se de ameaças realizadas com um cacetete, apertou a garganta do investigado, a fim de obter informação acerca da propriedade da arma. Sob a influência dessa agressão, o menor disse, falsamente, que o proprietário era o vereador Marcos Franzon. Ao tomar conhecimento dessa informação, o denunciado, juntamente com a vítima Carlos, foi até a residência de Marcos Franzon, quando, então, foi revelado, pelo adolescente, a identidade do real proprietário, seu irmão. Na seqüência, rumaram para a residência dos irmãos do adolescente, local em que o agente, a título de obter a arma cOs autos indicam que, no dia seguinte ao da sessão de tortura impingida a Aurino ¿ mas ainda na mesma noite ¿, por volta de 00h15 min, no Salão do Nelson, durante a realização de uma ¿batida¿ em vários estabelecimentos comerciais, o apelado, após constatar que o adolescente Carlos Ribeiro portava duas cápsulas de pistola, deflagradas, utilizando-se de ameaças realizadas com um cacetete, apertou a garganta do investigado, a fim de obter informação acerca da propriedade da arma. Sob a influência dessa agressão, o menor disse, falsamente, que o proprietário era o vereador Marcos Franzon. Ao tomar conhecimento dessa informação, o denunciado, juntamente com a vítima Carlos, foi até a residência de Marcos Franzon, quando, então, foi revelado, pelo adolescente, a identidade do real proprietário, seu irmão. Na seqüência, rumaram para a residência dos irmãos do adolescente, local em que o agente, a título de obter a arma cuja posse é vedada, ameaçou as vítimas, encostando a sua pistola na cabeça do adolescente, afirmando que estouraria os miolos do menor, se não lhe fosse informado o local em que estava uma arma de fogo. Além dessa grave ameaça, o apelado desferiu vários socos e pontapés nas vítimas, até que encontrasse a arma e realizasse a prisão em flagrante delito.

O vereador Marcos Antônio Frazon deixou claro, em seu depoimento, tanto na fase policial quanto na judicial, que, procurado em sua casa pelo apelado, que se fazia acompanhado do menor Carlos Ribeiro, presenciou as ameaças proferidas pelo Delegado, que, para isso, se utilizou de sua arma e de agressões, tais como socos e pontapés (fls. 236).

As vítimas também foram ouvidas e confirmaram o que diziam desde o início das investigações, ou seja, que foram, sim, submetidas a ameaças e agressões, realizadas com o intuito de obter a informação acerca da localização da arma de que foram produzidas as cápsulas deflagradas, encontradas com o menor.

A negativa do acusado, pelos motivos já expostos, é, também, insubsistente, não merecendo crédito.

Todavia, não se vislumbra, na espécie, que os fatos configurem o crime de tortura, já que, embora agredidas, as vítimas não foram submetidas a intenso sofrimento físico e moral e nem que este fosse o objetivo do apelado.

Neste passo, embora tratem da distinção entre os crimes de tortura e o de maus-tratos, é oportuno colacionar os entendimentos doutrinário e jurisprudencial.

ANA PAULA NOGUEIRA FRANCO, sobre a matéria, ensinou que ¿ao analisar as ações nucleares dos tipos começam a surgir as diferenciações. No delito de maus tratos a ação é a exposição ao perigo através das modalidades: a) privando de cuidados necessários ou alimentos; b) sujeitando a trabalho excessivo; c) abusando de meio corretivo. Já no art. 1º, II, da Lei n. 9.455/97, a ação se resume em submeter alguém (sob sua autoridade, guarda ou vigilância) a intenso sofrimento físico ou mental com emprego de violência ou grave ameaça. Nota-se que o elemento subjetivo do tipo do art. 136 é o dolo de perigo, o resultado se dá com a exposição do sujeito passivo ao perigo de dano. No crime de tortura, o resultado se dá com o efetivo dano, ou seja, o intenso sofrimento físico ou mental provocado pela violência ou grave ameaça. Nesta última situação o agente age com dolo de dano. Outra questão importante de se ressaltar, é que no crime de maus-tratos o agente abusa de seu ius corrigendi para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia. Diferentemente no crime de tortura, no qual o agente pratica a conduta como forma de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo" (Distinção entre Maus-Tratos e Tortura e o art. 1º, da Lei de Tortura, in Boletim do IBCrim, n. 62/Jan-98, p. 11).

Neste sentido também é o entendimento da jurisprudência:

¿A questão dos maus-tratos e da tortura deve ser resolvida perquirindo-se o elemento volitivo. Se o que motivou o agente foi o desejo de corrigir, embora o meio empregado tenha sido desumano e cruel, o crime é de maus tratos. ¿A questão dos maus-tratos e da tortura deve ser resolvida perquirindo-se o elemento volitivo. Se o que motivou o agente foi o desejo de corrigir, embora o meio empregado tenha sido desumano e cruel, o crime é de maus tratos. Se a conduta não tem outro móvel senão o de fazer sofrer, por prazer, ódio ou qualquer outro sentimento vil, então pode ela ser considerada tortura¿ (RJTJSP, 148/280).

No caso em tela, conquanto violenta e danosa a conduta realizada, ela não chega a configurar o intenso sofrimento psíquico ou físico necessário à configuração do crime de tortura. Ora, sendo um crime doloso, o delito de tortura, previsto no art. 1o, da Lei n. 9455/97, exige, necessariamente, não apenas a ciência do agente de que sua conduta impõe um elevado sofrimento à vítima (elemento cognitivo), mas também a vontade de produzir esta dor, moral e física (elemento volitivo). Em relação a este fato, não há indicativos de que fosse essa a intenção do agente e nem de que sua atitude tenha produzido a dor moral característica daquilo que se entende como tortura.

Não é demais lembrar que, em tese, todas as condutas típicas produzem, em maior ou menor grau, certa dor psíquica à vítima; porém, isso não implica que, associada a qualquer prática delitiva, haja, também, a realização da tortura.

Como bem salientado pela doutrina:

"Não obstante procure atingir um número limitado de situações, o processo de tipificação mostra-se defeituoso diante da impossibilidade de reduzir a infinita gama de atos humanos em fórmulas estanques. Por tal motivo, o processo legislativo de tipificação é realizado de forma abstrata, alcançando também o que Engish chama de casos anormais. A imperfeição do trabalho legislativo faz com que possam ser consideradas formalmente típicas condutas que, na verdade, deveriam estar excluídas do âmbito de proibição estabelecido pelo tipo penal" (Maurício Antônio Ribeiro Lopes, O Princípio da Insignificância no Direito Penal, SP: RT, 1997, p.62)

Assim, não é toda a conduta que produz sofrimento psíquico ou físico que implica a configuração do crime previsto no art. 1o, da citada lei, mas somente aquele que, diante das circunstâncias fáticas, amolde-se à idéia de intensidade inerente ao conceito comum de tortura.

Embora reprovável a conduta do agente, as provas não indicam que ele quisesse impor sofrimento intenso às vítimas, mas apenas que houve um claro excesso ¿ ainda que grave ¿ no seu proceder, o que poderia, se não ocorrida a prescrição da pretensão punitiva, configurar o abuso de autoridade, consubstanciado na incidência da alínea ¿i¿ do art. 3o da Lei n. 4898/65, vale dizer, ¿atentado à incolumidade física do indivíduo¿, cumulado com o crime de lesões corporais leves, previsto no art. 129, do CP.

Vale destacar que, não obstante exista divergência jurisprudencial sobre o tema, é de se adotar a corrente para qual ¿o crime de abuso de autoridade não pode ser absorvido pelo de lesões corporais, pois a Lei 4898/65 tem por objetivo resguardar os direitos constitucionais integrantes da cidadania, de eventuais abusos por parte de qualquer pessoa que exerça autoridade pública, finalidade esta diversa da do art. 129 do CP¿ (TACRIMSP ¿ ACr 820.097 ¿ 1ª C. ¿ Rel. Juiz Eduardo Goulart ¿ J. 05.05.1994).

Logo, embora afastada a possibilidade de aplicação da LeiLogo, embora afastada a possibilidade de aplicação da Lei n. 4898/65, os fatos praticados pelo apelado configuram, sim, o crime de lesões corporais (art. 129, ¿caput¿, do CP), que, embora não indicada na inicial, subsume-se aos fatos narrados na denúncia. Registre-se, por oportuno, que, desclassificada a conduta para o crime previsto no Código Penal, pode ser aproveitada, para os fins do art. 88, da Lei n. 9099/95, a representação oferecida pelas vítimas, embora esta visasse o crime da lei especial.

Neste entendimento, vide Ap. crim. n. 99.001134-8, de Turvo, rel. Des. Maurílio Moreira Leite, j. 14.03.2001, cuja fundamentação deixou consignado que ¿, tratando-se de lesão corporal de natureza leve, indispensável a representação da vítima, nos termos do artigo 88, da Lei n. 9.099/95, a qual se encontra nos autos, emergente dos depoimentos que prestou, contundentes e incisivos, em clara demonstração de pretender a persecução penal. E, como é sabido, à representação não é exigida forma sacramental.¿.

Na espécie, as agressões foram direcionadas às vítimas Carlos Ribeiro, Aloir Ribeiro, Adenir Ribeiro e Francisco de Assis Pires, o que implica, necessariamente, a existência de concurso de crimes, na modalidade prevista no art. 71, do CP, já que ocorreram nas mesmas circunstâncias fática, espacial e temporal, em clara continuidade delitiva.

5. Por tudo isso, diante dos fatos cometidos, o apelo deve ser provido para condenar Antônio Rogério Ribeiro por infração ao disposto no art. 1o, §1o, da Lei n. 9455/97, c/c art. 1o, §4o, ¿I¿, do mesmo diploma legal, e art. 129, quatro vezes, na forma do art. 71, ambos do CP.

Quanto ao primeiro delito, atento às condições do art. 59, do CP, verifica-se que o apelado é pessoa mentalmente sã, consciente da reprovabilidade social de sua conduta, agindo com culpabilidade intensa, em face do cargo ocupado, do qual decorre a maior consciência da ilicitude do fato; não apresenta antecedentes; os motivos, embora reprováveis, são os do tipo penal; não apresenta desvios em sua conduta social e personalidade; as circunstâncias e as conseqüências são normais à espécie; e o comportamento da vítima em nada contribuiu para a conduta. Assim, fixa-se a pena-base da privativa de liberdade pouco acima do mínimo legal, em 02 (dois) anos e 06 (seis) meses de reclusão.

Não existem agravantes ou atenuantes a incidir na segunda etapa da dosimetria.

Em razão da incidência do §4o do art. 1o da Lei n. 9.455/97, aumenta-se a pena-base em um sexto, ou seja, 05 (cinco) meses ¿ exasperação mínima, porque a motivação já foi levada em conta na culpabilidade intensa (art. 59, do CP) ¿ , resultando, assim, 02 (dois) anos e 11 (onze) meses de reclusão, tornada definitiva diante da ausência de outras causas de especial aumento ou redução.

A pena deverá ser cumprida em regime inicial fechado (art. 1o, §7o, da Lei n. 9.455/97).

O condenado não faz jus ao benefício previsto no art. 44, do CP, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 9.714/98, em face da violência utilizada.

Por força do §5Por força do §5o do art. 1o da Lei n. 9755/97, decreta-se a perda do cargo do apelado e a interdição para o exercício de cargo, função ou emprego público pelo dobro do prazo da pena aplicada.

6. Em relação aos crimes previstos no art. 129, ¿caput¿, do CP, tendo em vista a identidade de prática das infrações, aplica-se a pena de forma igual em relação a cada um dos delitos praticados.

Por isso, em relação às condições do art. 59, do CP, verifica-se que o apelado é pessoa mentalmente sã, consciente da reprovabilidade social de sua conduta, agindo com culpabilidade intensa; não apresenta antecedentes; os motivos, reprováveis, militam em desfavor do agente, que não apresenta desvios em sua conduta social e personalidade; as circunstâncias e as conseqüências são normais à espécie; e o comportamento da vítima em nada contribuiu para a conduta. Assim, fixa-se a pena-base da privativa de liberdade pouco acima do mínimo legal, em 05 (cinco) meses de detenção.

Na segunda etapa da dosimetria, constata-se que o agente praticou o crime durante o exercício de sua função, configurando-se, assim, a agravante contida na alínea ¿g¿ do inc. II do art. 61 do CP, razão pela qual aumenta-se a pena em 01 (um) mês, tornada definitiva face a ausência de atenuantes e de causas de especial aumento ou redução.

Consideradas, isoladamente, as penas fixadas em concreto (art. 119, do CP), resta consubstanciada a prescrição da pretensão punitiva, em sua forma retroativa, porquanto do recebimento da denúncia (19.07.1999, fls. 177) até a presente data, já decorreram mais de 02 (dois) anos, lapso temporal fixado como limite para a apuração da responsabilidade criminal do agente, nos exatos termos do art. 109, VI, do CP.

7. Diante do exposto, conhece-se do recurso e dá-se-lhe provimento parcial, para condenar Antônio Rogério Ribeiro ao cumprimento da pena de 02 (dois) anos e 11 (onze) meses de reclusão, em regime inicialmente fechado, mais a perda do cargo público exercido e a interdição para o exercício de cargo, função ou emprego público pelo dobro do prazo da pena aplicada.

Participou do julgamento, com voto vencedor, o Ex.mo. Sr. Des. Sérgio Baasch Luz, e lavrou parecer, pela douta Procuradoria-Geral de Justiça, o Ex.mo. Sr. Luiz Fernando Sirydakis.

Florianópolis, 25 de junho de 2002.
Maurílio Moreira Leite
PRESIDENTE C/ VOTO
Irineu João da Silva
RELATOR

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